Amália lá vai cantando que é uma casa portuguesa, mas o burburinho das conversas é em espanhol. Grupos de amigos jantam animadamente ao som de alguns dos grandes fadistas portugueses, na certeza de que dentro de momentos terão a oportunidade de ouvir e ver ao vivo os novos talentos de um estilo musical que é candidato a Património Imaterial da Humanidade. Está a começar mais uma noite de fados n"O Infante, a primeira casa do género em Madrid.«As pessoas vinham ter comigo e diziam que fazia falta uma casa destas. Como sempre tive este sonho, decidi arriscar. Eu gosto muito de fado e tenho a colecção completa da Amália Rodrigues, em português, espanhol, italiano, francês e japonês. Também gosto muito da Carminho, da Ana Moura e do Pedro Moutinho», conta à NS' José Luís Alves, de 51 anos, proprietário de O Infante. A casa de fados foi construída na continuidade do restaurante Trás-os-Montes, que ele e a mulher abriram há oito anos no bairro de Mirasierra, no Norte de Madrid. «Ele meteu esta ideia na cabeça e seguiu em frente. Desde o início do ano temos fados todas as sextas-feiras e sábados», explica Maria da Graça que, tal como o marido, emigrou para Espanha em 1976.O ambiente é português em todos os pormenores, desde os candeeiros de cristal da Maia aos lenços de Viana, passando pelo galo de Barcelos e pelas cerâmicas da Vista Alegre. A pequena sala é toda de madeira, para melhorar a acústica. A caminho dos camarotes dos fadistas, azulejos reproduzem a vista de uma das margens do rio Douro atravessado pela Ponte D. Luís no Porto. Há vinho e café portugueses para quem quiser, mas também vinhos espanhóis para os consumidores mais conservadores. À mesa, o melhor da gastronomia portuguesa tem por base receitas de bacalhau - são 22 e todas têm a mão de Maria da Graça.Ao longo dos anos, a chefe de cozinha do Trás-os-Montes foi fazendo experiências e misturando receitas portuguesas com espanholas para testar os clientes. No menu há, por exemplo, uma salada de lascas de bacalhau com molho catalão de tomate e azeite ou o bacalhau com vários tipos de marisco. «Existe também o mil-folhas de bacalhau ou o bacalhau dourado, que faço com menos cebola e com mais ovo porque os espanhóis gostam mais de ovo e batata», explica Maria da Graça. Na Quaresma, ligaram-lhe da Cadena Cope, uma das duas principais rádios espanholas, a pedir que ensinasse aos ouvintes uma das suas receitas de bacalhau. «Eu disse que sim e dei a receita do bacalhau à Zé do Pipo», conta, numa mistura de sotaque transmontano e expressões espanholas. «Antes, quando falava em bacalhau, aqui pensavam que era caldeirada e já está. Mas depois de provarem as variedades passaram a gostar muito. Já temos aqui clientes que são muito antigos.» Rei clienteO rei Juan Carlos vai ali todos os meses, talvez para recordar sabores da infância passada no exílio. «Vem aos dias de semana e não exige que o restaurante seja só para ele. Marca as mesas sempre com um nome fictício diferente e assim ninguém sabe exactamente em que mesa é que ele vai ficar. Vem com as irmãs ou com amigos que têm alguma ligação a Portugal», conta Liliana Neves, que veio para estudar e também foi ficando por Madrid, trabalhando hoje na área de assessoria de imprensa. «No início, os jornalistas contactavam directamente com José Luís e Maria da Graça por causa da casa de fados, mas como começou a haver muita procura por parte da imprensa resolvi ajudar.» Agora é como se ela já fizesse também parte da família. Os empregados da casa de fados e do restaurante andam num vaivém. José Luís Alves fala com os clientes para saber como estão e serve-os como qualquer outro dos seus funcionários. «As pessoas gostam sempre de falar comigo e com a minha mulher. Querem que estejamos aqui, por isso trabalhamos quase todos os dias e praticamente não temos folgas.» Nisto, uma voz masculina anuncia que a actuação da noite vai começar: «Silencio, por favor, se va a cantar el fado.» FadistasLuís Manhita faz as honras da casa com o tema Veio a Saudade, depois com Lisboa Menina e Moça e Leio em Teus Olhos. O burburinho das conversas abranda para dar lugar à voz do fadista algarvio, acompanhado pelas guitarras de Tiago Silva e Paulo Leitão. A assistência deixa escapar alguns aplausos, grita «Olé!» em vez de «Ah! fadista!»Filipa Maltieiro acompanha os refrões sentada enquanto espera a sua vez de cantar. Natural do Cartaxo, vive actualmente no Algarve, onde está a estudar Biotecnologia e é solista de fados na tuna da universidade. O seu traje académico inclui um chapéu inspirado no do infante D. Henrique - o mesmo que empresta o nome ao sonho de José Luís Alves. «Comecei a cantar há cinco anos, por mera brincadeira, numa noite de fados. Antes tinha cantado em ranchos folclóricos e isso foi um bom treino», diz a fadista de 21 anos, elogiando como inovadora a ideia de uma casa de fados em Madrid. Luís canta há muito menos tempo como profissional.«Comecei nos coros das igrejas e a minha formação é teatral. Havia uma amiga minha que dizia sempre que eu não era actor mas sim cantor. Um dia, convenci-me disso e fui finalista de um programa de televisão. A seguir gravei um disco e desde há dez meses que canto como profissional. Agora sobrevivo do fado, mas o meu objectivo é conseguir viver dele», explica o fadista farense de 33 anos.Tiago Silva, 26 anos, afirma que já consegue fazer isso. «Toco nas tascas do Chico, no Bairro Alto e em Alfama, seis dias por semana», refere o músico, natural da Chamusca, tal como Paulo Leitão, que toca guitarra portuguesa mas não faz disso profissão. «Eu primeiro sou advogado e depois, nas horas vagas, é que sou músico», conta o guitarrista de 39 anos, que também passou por tunas académicas e coros de igreja. «Tinha curiosidade em ouvir fado ao vivo pois nunca o tinha feito. Depois de vir aqui fiquei com muita vontade de ir a Lisboa», diz Isidro Moreno, um advogado de Madrid, na casa dos 40, que veio jantar com três amigos ao Trás-os-Montes e depois assistir aos fados em O Infante. Curioso, pergunta o que é isso da saudade de que tanto falam os fados. «Ai, então os portugueses são assim melancólicos e tristes? Então devem ser um pouco como os galegos, que também gostam da melancolia. Mas depois de beberem Alvarinho e comerem marisco ficam logo alegres», afirma entre risos enquanto admite que não conhece Amália Rodrigues.Mas noutra mesa, mais perto do palco onde cantaram Luís e Filipa, Amália é das vozes mais marcantes na vida de Jesus e Maria, dois colegas de trabalho madrilenos, cujas idades rondam a casa dos 50 e vieram pela primeira vez à casa de fados. «Nas festas da minha família ouvia-se sempre músicas da Amália», lembra Jesus, confessando ter ficado bastante impressionado com O Infante. «Antes de vir aqui este era um sítio da cidade como outro qualquer, mas depois de entrar parece que estamos em Lisboa.»Maria, educadora que já visitou Lisboa, recorda-se bem de Amália e do que a fadista representou para os seus tempos de juventude. «Ela aparecia muito na televisão e havia muitos discos e cassetes com músicas dela. Gosto também muito daquela fadista nova que é a Mariza.» Maria não duvida de que o fado venha a ser, tal como o flamenco, declarado Património Imaterial da Humanidade. «A saudade, o lamento, a melancolia que a música transmite tornam o fado bonito», refere, dizendo que apreciou especialmente a actuação de Luís Manhita.Luís, Filipa, Tiago e Paulo estão entre as quatro dezenas de fadistas e guitarristas que desde o início do ano já actuaram em O Infante. Vêm de Portugal propositadamente para cantar na casa de fados de Madrid. «Joana Cota, Francisco Salvação Barreto, Maria Emília, Diogo Rocha são alguns dos nomes que já passaram por cá», diz Liliana Neves, de 33 anos, sublinhando que os fadistas são diferentes todos os fins-de-semana. As despesas com viagens, alojamento em hotel de cinco estrelas, alimentação e cachê ficam a cargo de José Luís Alves.«Gasto quatro mil euros por semana para trazer cá fadistas. Os espanhóis pagam dez euros além do jantar para ver o espectáculo e acham muito. Ora isto numa casa só com capacidade para quarenta pessoas é complicado», confessa o empresário garantindo que não está arrependido. «Estou a pensar iniciar uma nova fase só com uma fadista que vive cá em Madrid», revela José Luís Alves, referindo-se a Patrícia Colaço, de 43 anos. Tem ainda na ideia aceitar propostas de fadistas que têm pedido para ir ali cantar, vindos de Santa Maria da Feira, de Coimbra ou do Algarve, mas também chamar de vez em quando vozes mais conhecidas do fado. «A Joana Amendoeira, por exemplo.» Liliana lembra que o objectivo não é ganhar nem perder dinheiro, mas oferecer uma mais-valia aos clientes de José Luís Alves e Maria da Graça. SucessoO casal, de Bragança, conheceu-se já em Espanha. «Eu tinha 15 anos quando vim de Laviados aqui para Madrid. Na altura, naquelas aldeias, praticamente ninguém estudava e como via as raparigas que vinham de férias tão arranjadinhas também decidi vir para cá», conta Maria da Graça, hoje com 49 anos, mãe de três filhos já adultos: António (de 27 anos), Isabel (de 26) e Ismael (de 22). «Até fui privilegiada, porque já tinha cá a minha irmã e comecei a trabalhar no restaurante do marido dela, que ficava perto da Gran Vía.» Aí perto havia também uma casa de portugueses, num quarto andar, onde se ia tomar refrescos, antes de se ir para outros bares ou discotecas. «Creio que já tinha visto o meu marido por lá, mas foi nas discotecas que nos conhecemos melhor.» Quando casou, em 1982, Maria da Graça tinha 21 anos.«Começámos a trabalhar muito novos e quase sem folgas. Até quando me casei tive de pagar a um rapaz da minha terra do meu bolso para trabalhar por mim nos seis dias da lua-de-mel», lembra José Luís Alves, que é natural de Carção e tem actualmente 51 anos. «Estava no liceu de Sintra a fazer o quarto ano e, no segundo trimestre, decidi vir. Já tinha cá família e o meu primo arranjou-me trabalho a lavar pratos num restaurante. Quando aprendi a falar castelhano passaram-me para as mesas. Na altura, a opção para os portugueses eram os restaurantes ou a construção civil. E depois, há vinte anos, eu e a minha mulher tornámo-nos independentes.» Abriram primeiro um restaurante chamado Dom Sol, também em Mirasierra, que vendia cerca de seiscentos quilos de bacalhau por semana. Mais tarde abriram no mesmo local o Trás-os-Montes e ainda um outro chamado Transmontano, gerido pela filha do casal. A sua última aventura chama-se O Infante, a casa de fados onde têm a ajuda do filho António. É ele quem escolhe as músicas que passam antes de os fadistas começarem a actuar. Uma Casa Portuguesa, de Amália Rodrigues, é tema obrigatório.Dulce Pontes, Mariza e Amália no topEm Madrid é possível encontrar CD de fado na FNAC e no El Corte Inglés. Nas lojas perto da Gran Vía, uma das principais artérias da capital espanhola, Dulce Pontes, Mariza e Amália Rodrigues surgem como as vozes portuguesas mais procuradas pelos espanhóis, segundo os vendedores. Nessas lojas, o fado surge na secção Músicas do Mundo. Kátia Guerreiro, Ana Moura, Mafalda Arnauth, Mísia, Cristina Branco ou Pedro Moutinho são outros dos nomes disponíveis. O InfanteCalle Senda del Infante, 28 (Mirasierra) MadridFados: Sexta-feiras e sábadosHorário: 21h30 às 04h00