Nestes tempos de super-heróis de muito ruído, zero imaginação e avalanches de marketing, será que ainda somos capazes de reconhecer, acompanhar e partilhar a vida de uma personagem? Será que conseguimos libertar-nos dos estereótipos promovidos por telenovelas e afins, ocupando o espaço social todos os dias, em todos os horários nobres? Ou já alienámos a capacidade de formular a pergunta-chave, mesmo que, ou sobretudo quando, as nossas respostas atraiam um rio de incertezas: de que falamos quando falamos de uma personagem?.Reencontrei a pergunta num fascinante acontecimento teatral, regressado a um palco de Lisboa. Chama-se Eu Sou Clarice, estreou-se no São Luiz em outubro de 2021 e está agora, até 2 de abril, na sempre encantadora Sala Vermelha do Teatro Aberto. Clarice, entenda-se, é Clarice Lispector (1920-1977), a escritora brasileira nascida na Ucrânia - devido às perseguições feitas aos judeus, a sua família judaica russa emigrou para o Brasil em 1922. Como escreve a encenadora Rita Calçada Bastos, também responsável pelo cenário do espetáculo, ela é um "belo espelho da condição humana", através de uma obra centrada na mulher "e na liberdade de se ser tudo, no mesmo dia"..Por uma vez, aqui fala-se, encena-se, pensa-se a mulher sem acolher a violência simbólica, muito na moda, de a reduzir a um "tema" que engrenaria automaticamente, de forma unívoca e universal, em qualquer personagem feminina. O título, aliás, alerta-nos para o caráter irredutível deste processo criativo: Eu Sou Clarice, quer dizer, alguém diz "eu", desse modo arriscando comprometer tudo e todos na afirmação da sua singularidade feita de coisas transparentes e coisas indecifráveis. Incauto ou não, o espectador, mulher, homem ou extraterrestre, repete o título e reconhece que aquele "eu" o apanha na esquina da linguagem..É bem verdade que são muitas, e muito poderosas, as forças que nos levam a menosprezar a noção de personagem. Afinal de contas, há poucas semanas, nos prémios de Hollywood, o planeta inteiro assistiu à consagração de Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, filme que, na melhor das hipóteses, podemos reconhecer como uma variação sobre as matrizes dos videojogos: não interessa para onde vai a ficção, as figuras humanas são meros títeres a serem "surpreendidos" pela cena seguinte, enfim, confunde-se criação com arbitrariedade... Isto no mesmo ano em que alguns filmes nascidos da paixão pelas suas personagens - Tár, de Todd Field, ou Os Fabelmans, de Steven Spielberg - foram serenamente ignorados..Clarice Lispector é essa personagem que existe através do assombramento das suas próprias palavras. Eis um universo alheio aos automatismos e velocidades de likes e links, perversas (e muito demagógicas) ilusões de comunicação - alguém se atreveu mesmo a dar-lhes o nome de "redes sociais". Ou ainda, em termos teatrais: a complexidade, sempre em aberto, da personagem apresenta-se revisitada e reinventada pelo trabalho de representação..A composição de Carla Maciel tem qualquer coisa de milagroso. Longe de qualquer noção académica de "ilustração" da escrita, a sua interpretação existe como uma viagem íntima, quase secreta, mas partilhável, através dos poderes esquecidos da palavra, da redescoberta do seu lugar central na dinâmica da "condição humana" a que Rita Calçada Bastos se refere. A atriz pode evoluir assim, em esplendoroso ziguezague, da condição de clown a figura eminentemente trágica, de corpo de marioneta a presença insondável, capaz de transcender qualquer imagem unívoca e definitiva - ou "a liberdade de se ser tudo, no mesmo dia", na duração efémera que o palco acolhe..Será preciso repetir que essa liberdade não é panfletária nem resulta de qualquer arrogância mediática? Há em Eu Sou Clarice uma paixão pela verdade totalmente alheia à pedagogia "justiceira" (observe-se o VAR do futebol) que passou a dominar o nosso quotidiano. A verdade que encenadora e atriz perseguem é tanto mais radical quanto reconhece o seu relativismo filosófico, abrindo-se aos enigmas que sustentam o mundo. Ou, como escreveu Clarice Lispector em Água Viva (1973): "Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.".Pouco tempo antes do seu falecimento - a 9 de dezembro de 1977, na véspera de completar 57 anos, vítima de cancro do ovário -, a escritora deu uma entrevista em que fala da origem ucraniana do apelido "Lispector" (disponível no YouTube, em "TV Cultura"). Aí recorda a curiosa reação do crítico, também escritor, Sérgio Milliet ao seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem (1943). Dizia ele que era um "nome desagradável, certamente um pseudónimo...".Clarice Lispector poderia refazer a célebre frase de Gustave Flaubert sobre a sua Emma Bovary: "Madame Bovary sou eu." Na certeza de que o uso do pronome "eu" está longe de ser um trejeito banalmente descritivo, antes abrindo o território sem fim da aventura da identidade. E da consequente odisseia do nome..Jornalista