Macacos kitados
Donald Trump disse que uma jornalista lhe fez perguntas inconvenientes porque estava menstruada. Nuno da Câmara Pereira acredita que, entre os homossexuais, 90 por cento "escolheram" sê-lo por uma questão de moda. Pedro Arroja avança que a pulsão dos africanos pelo sexo está na origem da sua falta de produtividade. O que é que todos temos em comum com estes homens? Ignorância e preconceitos. Como eles, todos somos ignorantes em muitas áreas de conhecimento e todos nós, por mais liberais e igualitárias que sejam as nossas convicções, temos algum tipo de preconceito. No entanto, nem todos fazemos da ignorância e da mentira um estandarte da bazófia. E muitos de nós, dando-se conta dos seus preconceitos, tentam desenvencilhar-se deles ao longo da vida, dispondo-se a mudar de opinião sobre algo que nos foi passado como adquirido. Para cada vez que nos disseram que deus fez o mundo em menos de uma semana, há seis mil anos, e a mulher surgiu da costela de Adão, houve uma aula de ciências, um livro ou um documentário explicando a teoria da evolução, a procriação da espécie e a verdadeira idade do planeta.
Ainda que contrapor Trump, Câmara Pereira ou Arroja possa parecer um exercício tão infrutífero como rezar para que faça sol, esse confronto com este tipo de personagens mediáticas, cujos argumentos excedem em certeza aquilo que lhes falta em evidências, é hoje inevitável, seja pela necessidade que o ciclo noticioso de 24 horas tem de criar audiências, seja pela, cada vez mais generalizada, perceção da vida como um espetáculo (da selfie ao reality show), seja pela velocidade e disseminação que alcançam os disparates nas redes sociais. Seria ingénuo - e pouco conforme com a liberdade de expressão - pensar que poderíamos tirar o tempo de antena a estes protagonistas do obscurantismo medieval na era da Internet. É preciso expô-los, continuamente, ao ridículo.
É claro que as crenças de Trump, Arroja ou Câmara Pereira têm impactos distintos, afinal, o primeiro pode vir a ser presidente dos Estados Unidos, o segundo talvez espalhe desconhecimento entre os alunos das várias faculdades onde foi professor, e o terceiro entretém os leitores das revistas cor-de-rosa com assuntos tão prementes como a canonização de Nuno Álvares Pereira, o equivalente a discutir a existência de duendes e elfos. Mas estes três homens têm algo em comum: certezas inquestionáveis sem fundamentos que as justifiquem, a prosápia dos marialvas e uma sociedade toxicamente mediatizada que amplia os seus despropósitos.
Trump quer impedir os muçulmanos de entrar nos EUA, mas faz negócios com os príncipes da Arábia Saudita, ditadura que financia terroristas e onde se organizam execuções públicas, de acordo com a sharia (lei islâmica): o adultério vale um apedrejamento, a apostasia (renunciar a religião) vale uma cabeça cortada. Trump diz que os refugiados sírios podem ser um Cavalo de Troia no seu país, mas não menciona o intenso e longo escrutínio por que têm de passar aqueles que pedem asilo (um processo de 18 a 24 meses, que inclui a aprovação de onze instituições como o FBI ou o Departamento de Estado).
De cada vez que Arroja dissesse "Alguém escolheu que eu fosse homem. Esse alguém, racionalmente, é Deus", deveria haver uma criança de dez anos que lhe explicasse, racionalmente, o que é um espermatozoide e um óvulo. De cada vez que Nuno da Câmara Pereira declarasse na TV que ser gay é como usar as cores da estação, e não fosse capaz de sustentar, com provas, os seus palpites delirantes, deveria ouvir as histórias, em primeira pessoa, de homossexuais que enfrentaram a discriminação das famílias, que foram atacados na rua, humilhados na escola, apenas porque, caprichosos, cederam às tendências decretadas pelas revistas.
Num tempo em que o conhecimento está mais acessível do que nunca, escolher a burrice é grave, mas colocar empenho na propagação dessa ignorância é como dizer a uma criança que, se quiser ser astronauta, deve começar a estudar astrologia para saber quando é que Mercúrio está retrógrado.
Nós, humanos, ainda que nos tenhamos em boa conta, somos apenas uma espécie de macados kitados com bons acessórios. Se formos honestos, sabemos que a nossa estupidez e limitações serão vistas, daqui a muitos anos, como nós vemos hoje a escravatura, a Inquisição ou a lobotomia. Mas há dois tipos de macacos kitados: aqueles que agem de forma a que as gerações futuras olhem para nós com menos repulsa e uma certa compaixão - "Eles fizeram o melhor com o que sabiam na altura"; e depois há aqueles que ainda não perceberam que não são os gays, os pretos ou os muçulmanos o maior mal do mundo. Aquilo que causa mais sofrimento, morte e atraso é a ignorância que estes macacos kitados insistem em pregar.