Para os portugueses apreciadores de ópera há um momento especial na vida de Maria Callas: o dia 27 de março de 1958. Foi o primeiro momento da sua passagem por Lisboa, para cantar a Traviata no Teatro Nacional de São Carlos. Na biografia de Lyndsy Spence, essa noite, e a apresentação seguinte, têm uma duração curta, relatados num parágrafo: "A primeira sensação que se tem ao ouvi-la é de sinais contrários. O timbre da voz não seduz (...)". Tendo sido solicitado à autora que desse mais pormenores sobre a prestação portuguesa, Spence refrescou a memória: "Eu reli essa parte antes da entrevista e a forma como vejo esses dias é que quando ela passou por Lisboa estavam a acontecer coisas horríveis na sua vida - escândalos e a crise com o La Scala de Milão -, e ao chegar a Portugal estava cansada e aborrecida. Além de que esperava que o público português a tratasse mal como acontecera com o da América, no entanto, e pelo contrário, foram muito simpáticos para com ela. Receberam-na com bastante calor e amizade, o que se tornou bem diferente de outras receções, mas ela apenas cumpriu a obrigação e foi-se embora rapidamente.".A memória nacional recorda Callas de outra forma que não a dos críticos, como se pode ler no Diário de Notícias de então: "Maria Callas subiu ao palco no papel de Violetta Valéry, acompanhada por um elenco que incluiu Alfredo Kraus, Mario Seremi, Laura Zanini, Piero de Palma, Vito Susca, Alessandro Maddalena, e os portugueses Maria Cristina de Castro, Álvaro Malta e Manuel Leitão (...). Na véspera, o jornal descrevia assim a chegada da diva: "Um vendaval trouxe-nos Maria Callas. Simpática e sorridente e sem incidentes". Os ecos dessa apresentação acabaram por se refletir, 60 anos depois, numa edição discográfica que, segundo o crítico John Steane, continha "o culminar da grande arte de uma cantora operática". Acrescenta que a gravação da Traviata de Lisboa "insinua os problemas privados que Callas começava a enfrentar, e que acompanharam a sua carreira até a um final prematuro, mas não se pode fugir à cena de abertura do terceiro ato, na qual ela lê da carta do pai do seu amante e canta Addio, del passato"..E é essa complexa vida que Lyndsy Spence narra ao longo de quatrocentas páginas, numa biografia que jamais esperou ser traduzida para português: "Foi uma surpresa, até porque a editora portuguesa foi a primeira a adquirir os direitos, daí que esta edição seja muito importante para mim." Com acesso a um manancial de correspondência inédita, pela qual passa a chantagem da mãe, os abusos de Onassis, bem como o comportamento do marido Meneghini, a autora faz renascer a diva sob um outro olhar. Lindsy Spence encontrou em 2019 três arquivos com cartas e documentos, onde estavam várias vertentes da vida de Callas nunca antes explicadas e que iluminam, diz, "os seus pensamentos mais íntimos". Entre eles, alguns menos perfeitos como a sua opinião sobre a rival Renata Tebaldi, referido a voz desta como bastante diferente: "Uma é champanhe e outra refrigerante"..A fotografia da capa não é a que o leitor esperaria, uma diva de rosto tapado!.Esta é uma imagem de que gosto muito, porque mesmo não a podendo ver por inteiro as pessoas reconhecem-na de imediato pois tem o seu olhar icónico. Também porque proporciona um outro significado: achamos que conhecemos Callas, mas não é verdade..Porque escolheu Maria Callas para biografar?.Porque sempre gostei dela e li tudo o que existe sobre si. Quando chegou a altura em que tinha de escolher uma mulher sobre quem escrever houve uma coincidência, a de ter descoberto muito material inédito em arquivos e tudo se encaixar para avançar neste projeto..Existem cerca de 100 livros sobre a cantora. Não foi difícil estabelecer uma diferença?.A maioria dos livros tratam de escândalos e rumores na sua vida e eu queria dar outra perspetiva, a da verdadeira mulher. A mais famosa biografia dela foi publicada há dez anos e, entretanto, mudou muito a forma de olhar para as mulheres, portanto era o tempo exato para uma outra visão..O que mais a surpreendeu nos documentos inéditos a que teve acesso?.Compreendi que era uma pessoa normal por trás de uma imagem mais conhecida, o que também surpreendeu em muito a maioria dos leitores. Além de que como uma parte da sua lenda nunca fez sentido para mim, como a de quando perdeu a voz e ao mesmo tempo que o marido, Onassis. O que é mais surpreendente não é o que já se sabíamos, mas que o ter perdido a voz se deveu a uma doença e evitou apresentar-se como uma vítima..Como conseguiu toda esta documentação nunca trabalhada?.Eu tenho um estilo de investigação muito próprio seja quem for o biografado. Quero saber quem foi na realidade e para o conseguir procuro material novo e que seja desconhecido. Além disso, não estou preocupada com o que o leitor deseja encontrar num livro. Callas é como Elvis, Marylin Monroe, pessoas que o nome diz tudo e muitas vezes o que se escreve sobre elas resulta de alguma preguiça. Tive a grande sorte de encontrar uma coleção de cartas de Robert Baxter e tudo o que de desconhecido se poderia querer encontrar estava ali numa caixa. Tive sorte, acho que ganhei a 'lotaria Callas' porque pude passar a ver toda a vida de Maria de outra forma. Foi surpreendente..Qual foi o processo que utilizou para descobrir a informação escondida, ou nas entrelinhas, existente em todos esses novos documentos?.Muitas vezes as cartas pareciam normais, mas quando as comparava com outras escritas em períodos determinados da sua vida compreendia-se melhor o que lhe acontecia. As cartas são muito intensas e colocam-nos dentro da sua cabeça e como é a sua visão sobre essas épocas. Eu estava à procura de certas respostas e o que lia dava sentido à minha investigação..O que faltou descobrir?.Eu gostaria de ter tido acesso aos seus registos médicos, mas não me foi permitido. No entanto, li cópias das cartas que o seu médico lhe escrevera num tempo em que estava num colapso nervoso, bulímica, exausta e muito doente, situações que não podiam ser reveladas naquela época. De certa maneira, foi penalizada por essa realidade dos tempos..Como reagiram os outros biógrafos à sua descoberta?.Ceio que todos os biógrafos têm certas sensações... mas todos querem ver novas histórias acrescentadas às que já se conhecem, afinal quando se quer descrever uma figura gigantesca é sempre um trabalho em continuação. Mas sei que alguns acharam que eu tinha exposto demasiado Callas ao escrever sobre uma parte da sua vida privada, que houve comentários muito maus, contudo nada disso me importou..Ser uma fã de Callas ajudou-a a estruturar a biografia?.Não sou uma fã no sentido de colecionar tudo sobre ela ou de essa admiração provocar uma lavagem cerebral. É verdade que a admiro e respeito, no entanto para fazer este trabalho necessitava de ser objetiva. Todo o conhecimento que já possuía ajudou-me de modo a fazer comparações com outra independência no que investiguei. Sou uma fã, mas não fanática..Citaçãocitacao"Gostaria de ter tido acesso aos seus registos médicos, mas não me foi permitido. No entanto, li cópias das cartas que o seu médico lhe escrevera num tempo em que estava num colapso nervoso, bulímica, exausta e muito doente, situações que não podiam ser reveladas naquela época." .A sua intenção foi dar-lhe uma voz... conseguiu?.Sim. Acho que dei a voz que pretendia ao conseguir compreendê-la melhor e voltar a dar-lhe a espessura de um ser humano em vez de fazer o mesmo retrato que aparecia nos tabloides. Creio que a partir deste livro, as pessoas são capazes de a observar sobre uma outra perspetiva, até mais respeitosa..Qual é a principal revelação desta biografia? .Especialmente o que se percebe das suas cartas para o padrinho, em que relata o que lhe está a acontecer, as dores, as relações, o quão infeliz era e fora, o muito que estava a trabalhar e o desejo de ter uma vida pessoal e familiar mais privada. As pessoas pensavam que ela tinha perdido a voz porque emagrecera e eu nunca acreditei que fosse essa a razão. Havia um problema, provavelmente de origem neurológica, e mantive isso no meu pensamento. A partir de um certo momento as cartas eram muito claras e consegui compreender o que levou à perda da voz. Peças que faltavam a vários biógrafos e académicos durante décadas, estavam ali à minha frente..Todos os seus maridos foram um problema. Era uma maldição?.Creio que se deve à influência narcisista da mãe e à sua vontade de controlar as pessoas. Quando Callas se casou em Itália e se transformou em La Callas, o divórcio era ilegal e foi-lhe difícil voltar a ter a sua liberdade. Era uma época muito diferente ao nível dos direitos das mulheres..A mãe viu na filha a oportunidade de fazer dinheiro com as suas capacidades vocais dela?.Sim, a mãe queria que ela fosse tão popular como a jovem atriz Shirley Temple e tomou as rédeas da sua carreira para a transformar numa estrela. Entre as muitas cartas, existiam algumas da mãe, em que o assunto era ainda o dinheiro e dizia à filha que não queria saber o que ela pensava de si..Na carreira teve muitas rivais. Como convivia Callas com essa competição?.Tinha um mau comportamento para com as rivais, como no caso de Renata Tebaldi. Nas cartas lê-se a sua opinião e de como falava mal dela aos seus amigos. Mas isso faz parte da natureza da ópera, onde se tem de lutar pelo lugar com muita força. Ela sentia-se ameaçada, mesmo não devendo porque era uma das melhores intérpretes de todos os tempos..O livro tenta mostrar a mulher por trás da diva. Acha que os leitores têm interesse nessa faceta ou preferem ficar só com o lado da diva?.Creio que muitas vezes o que está por trás da diva os assusta, especialmente os fãs, que eram fanáticos e não queriam perceber a realidade. Preferiam desconhecer a verdadeira história e isso é assustador. Quanto aos leitores normais, eles têm uma mente mais aberta e estão interessados numa visão mais geral..Coloca no início de cada capítulo uma frase de uma tragédia grega ou de uma ária. Não é possível separar Callas do que cantava?.Pode se encontrar um pouco de Callas em tudo o que interpretava; na Traviata, na Tosca, e Medeia. É difícil separar das interpretações porque ela compreendia essas personagens como poucos e relacionava-se com eles como se estivesse à procura de si..Depois de ter escrito a biografia da duquesa de Argyll, que diferenças existiam entre elas?.A duquesa vivia para a publicidade e estava sempre perfeita, com o cabelo bem penteado, roupas bonitas, e Callas nunca desejou ser perfeita a esse nível. E era honesta o suficiente para sofrer devido aos seus lados negativos..Qual é o próximo projeto?.Provavelmente, é mais uma mulher, a atriz Vivian Leigh. Mas ainda não sei bem, pois são personagens muito diferentes..Lyndsy Spence.Editora Desassossego.394 páginas