Luvas especiais fazem maestro de 80 anos voltar a tocar piano
Desde 1998, uma doença e vários acidentes foram atingindo as mãos do maestro João Carlos Martins a ponto de o forçar a parar de tocar piano. Contudo, a despedida não foi definitiva. Graças a umas luvas especiais, os dedos do aclamado músico puderam reencontrar as teclas.
"A minha luta tornou-se ainda maior quando percebi o reconhecimento do meu passado na imprensa internacional", disse Martins à AFP, no seu apartamento em São Paulo, antes de tocar algumas notas no seu piano Petrof. A motivação foi recompensada. Prestes a completar 80 anos, Martins comemorará em outubro os 60 anos da sua primeira apresentação no Carnegie Hall, em Nova Iorque.
Em redor de Martins, tudo é música. A sala foi projetada de forma a lembrar um piano de cauda. Prémios e fotos da sua trajetória artística estão por toda a parte. "Sou perfeccionista. João Gilberto e eu, a gente dava-se muito bem, um pior que o outro", brinca o maestro, em referência à conhecida meticulosidade do pai da Bossa Nova.
No seu caminho há dores e glórias. Martins enfrentou as consequências de uma distonia focal, uma enfermidade neurológica que altera as funções musculares, diagnosticada quando tinha apenas 18 anos. Além disso, feriu o cotovelo num acidente durante um jogo de futebol e foi golpeado na cabeça quando foi vítima de um assalto na Bulgária.
À medida que os dedos foram enrijecendo, foi renunciando ao piano. Há duas décadas passou a tocar apenas com a mão esquerda, mas aos poucos o movimento ficou limitado aos polegares. Como não havia muito a fazer, começou a dedicar-se à regência.
Um dia o designer de produtos Ubiratan Costa apareceu no seu camarim com um par de luvas e a esperança de poder devolver a alegria ao lendário músico. "As luvas não serviram, mas convidei-o para almoçar", disse o pianista, e a partir dali Costa começou a desenvolver novos protótipos.
As luvas, que combinam neoprene e peças feitas em impressora 3D, passam por constantes adaptações. "Já perdi a conta de quantas fiz", refere o designer.
De forma carinhosa, Martins conta que "antes de aparecer esse maluco com essas luvas", a sua rotina consistia em acordar às 5h30, ler os jornais, comer dois ovos fritos e memorizar partituras, já que a sua condição não o permite virar as páginas durante a música. De cabeça, o maestro sabe cerca de 15 mil partituras.
Agora, por causa dessa tecnologia e de um robô desenvolvido na Europa para conseguir virar as páginas das partituras, pode voltar a fazer o que mais ama: tocar piano.
"Antes a casa perdia luz", diz a sua mulher Carmen Martins. "Agora acordo com a música. À noite vou deitar-me enquanto o escuto tocar", acrescenta a advogada, que descreve o marido como uma "criança que sempre tem esperança de que tudo se torne possível".
O pianista gostaria de trazer para o Brasil uma versão do programa venezuelano "El Sistema", do maestro José António Abreu, que trouxe esperanças a milhares de crianças pobres e de classe média. Com isso em mente, Martins viajará para a fronteira venezuelana em fevereiro para receber músicos desse país. "Tudo foi gratificante na minha carreira como pianista e maestro, mas há um buraco: tentar deixar um legado, e tentar deixar um legado é o projeto 'Orquestrando São Paulo, Orquestrando Brasil', como intitulei 'El Sistema' no Brasil", diz Martins, que resume a sua trajetória como "uma vida baseada em ideais".