Luso-brasileiro é acusado de ser o teórico do golpe tentado por bolsonaristas 

Mensagens de telemóvel de ajudante de Bolsonaro provam que parecer de Ives Gandra, jurista distinguido por Marcelo Rebelo de Sousa com a Ordem do Infante, foi utilizado por militares como pretexto para implodir o regime.
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Membros do círculo íntimo de Jair Bolsonaro e oficiais do exército do Brasil discutiram o uso das Forças Armadas contra o resultado da eleição de outubro de 2022 que tornou Lula da Silva presidente, de acordo com mensagens do telemóvel de Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro, tornadas públicas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nelas, os conspiradores usam uma tese do jurista luso-brasileiro Ives Gandra Martins para legitimar um golpe de Estado. Ele nega participação na trama [ver entrevista ao lado].

Ives Gandra da Silva Martins, nascido em 1935 em São Paulo, é filho do português José Martins, natural de Braga, e irmão de João Carlos Martins, o mais popular dos pianistas clássicos brasileiros. Foi distinguido com centenas de condecorações no Brasil e, também, em Portugal, incluindo a Ordem do Infante Dom Henrique, entregue pelo presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em 2016.

Membro da Opus Dei, fundador do Instituto Brasileiro de Direito e Religião e professor de Direito no comando do exército - Hamilton Mourão, vice-presidente de Bolsonaro, e Braga Netto, candidato a vice de Bolsonaro em 2022, foram seus alunos -, as opiniões de Ives Gandra, frequentemente emitidas nos jornais de São Paulo, sempre foram aplaudidas à direita.

Bia Kicis, deputada bolsonarista, chamou-o de "maior constitucionalista vivo" e Carla Zambelli, outra fervorosa parlamentar de extrema-direita, homenageou-o "pelo exemplo de vida ética e honrada".

Nas mensagens divulgadas pelo STF, o coronel do Exército Lawand Junior pressiona Mauro Cid para a realização do golpe. "Cidão, pelo amor de Deus, cara. Ele [Bolsonaro] que dê a ordem porque o povo está com ele, cara. Se os caras não cumprirem, o problema é deles. Acaba o exército brasileiro se esses caras não cumprirem a ordem do Comandante Supremo", suplicava o coronel. Em resposta, Cid afirma: "Muita coisa acontecendo. Passo a passo".

De facto, o ajudante de Bolsonaro no Planalto tinha no telemóvel uma "minuta do golpe", semelhante a outra encontrada numa busca, na sequência dos ataques de 8 de janeiro, à casa do ex-ministro da Justiça bolsonarista Anderson Torres, com o "passo a passo" para a declaração de "estado de sítio" e consequente golpe.

Noutra mensagem dirigida ao braço direito de Bolsonaro, Lawand assegura que recebeu de Édson Rosty, general de divisão, a garantia de que se chegar uma ordem do presidente para aplicar o golpe, o oficial cumpriria prontamente.

E, finalmente, chega a Cid, por via do tenente-coronel Marcelino Carneiro, comandante do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, um documento com uma consulta a Ives Gandra onde, nas respostas às questões, o jurista defende a tese de que o artigo 142 da Constituição dá às Forças Armadas o papel de poder moderador, que poderia ser usado em caso de "inimigo externo ou crise entre poderes".

Por ser um dos raros nomes com prestígio a gravitar no bolsonarismo, a referência a Gandra em mensagens de teor golpista alertou a imprensa e os rivais políticos.

"É possível afirmar, sem dúvida alguma, que ele [Ives Gandra] foi o mentor teórico do golpe, a pessoa que usou a sua reputação para distorcer a lei e disseminar uma ideia absolutamente falsa: a de que a Constituição preveria a possibilidade de as Forças Armadas serem instrumento de um golpe", escreveu o site do Partido dos Trabalhadores.

Gleisi Hoffmann, presidente do partido de Lula, acrescentou nas redes sociais que "o famoso professor Ives Gandra, que já foi tido em alta conta nos meios do Direito, foi flagrado no celular do Mauro Cid como fonte "jurídica" do golpe militar bolsonarista". "Inspirador da extrema-direita no Brasil e no estrangeiro, o professor Ives, quem diria, terminou como jurista de quartelada", concluiu.

Em artigo na Folha de S. Paulo sob o título "Cid não planeou o golpe sozinho", o sociólogo Celso Rocha de Barros ironiza a participação de Gandra e a tese, mantida pela defesa de Bolsonaro, de que o presidente não teve conhecimento das manobras golpistas do seu círculo íntimo.

"Cid tentou organizar um golpe por Jair, sem combinar com Jair. Seria uma espécie de golpe festa surpresa. Como seria isso? Imagino que Michelle seria encarregada de tirar Jair de casa para fazer alguma dessas coisas que todo o casal faz junto, como extravio de joias ou rachadinha".

"Na volta ao Alvorada", prossegue Barros, "um Bolsonaro algo perplexo encontraria o palácio às escuras. Quando acendesse a luz, os chefes das Forças Armadas bateriam palmas, gritariam "Surpresa!" e Ives Gandra sairia de dentro do bolo, vestido de Marilyn Monroe, cantando "Happy golpe, Mr. Presideeeeeeent".

No portal UOL, o jornalista Reinaldo Azevedo classificou as respostas de Gandra como "um lixo fantasiado de Constituição para golpistas".

Dada a repercussão, o escritório Advocacia Gandra Martins emitiu nota no dia seguinte à divulgação das mensagens de Cid. "São usados nas mensagens e-mails de respostas dadas a um aluno em 2017 versando sobre questões constitucionais, nas quais jamais se incitou qualquer tipo de conduta golpista e que afrontasse o respeito ao Direito e à nossa Ordem Constitucional".

O jurista e a filha Ângela, que foi secretária nacional da Família no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos sob o comando da ministra Damares Alves na gestão Bolsonaro, apareceram num vídeo a desmentir influência na tentativa de golpe. "O único golpe que eu quis dar, e meu pai também, é o golpe no coração das famílias, para fortalecer os vínculos. Um golpe de paz e de amor".


Como encara ser visto como teórico de um golpe de Estado pró-Bolsonaro no Brasil?
Eu ajo, não reajo e ataco ideias, não pessoas. Não direi que me foi indiferente esta situação porque me deu o trabalho de ter de responder. Mas em artigo de 28 de novembro no site Consultor Jurídico eu já dizia que não havia nenhum risco de golpe porque dou aulas a oficiais do exército há dezenas de anos e conheço a mentalidade deles.

Acha então que os bolsonaristas usaram a sua tese de forma abusiva?
Não faço juízo de valor sobre as mensagens que eles trocaram mas se eles tivessem lido os meus artigos e livros sobre o artigo 142 não usariam essa minha troca de e-mails de maio de 2017 com um aluno dessa forma. Repare, eu respondi a um aluno, que nem era meu aluno, na verdade, era major e eu dou aulas a coronéis que vão passar a generais, mas eu respondo sempre a todos os alunos, meus ou não, que me solicitem, e eles usaram isso.

Na última quinta-feira deu palestra na Escola Superior de Guerra vedada à imprensa. Abordou a controvérsia?
Não, dei a minha aula da mesma forma que dou há anos, a militares, incluindo estrangeiros, e a membros da sociedade civil. E recebi comovente saudação de agradecimento no final. Além de ter recebido dezenas de mensagens de desagravo nos últimos dias.

Alguma vez sentiu a democracia brasileira em risco após a vitória de Lula?
Não. No tal artigo publicado em novembro no site Consultor Jurídico já dizia que o risco de golpe era de zero multiplicado por zero e dividido por zero.

dnot@dn.pt

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