Sentado na plateia do auditório do Museu da Marioneta, em Lisboa, uma sala pequena mas acolhedora onde na terça-feira se estreia o espetáculo Canja de Galinha (com Miúdos), Luís Miguel Cintra não consegue esconder a desilusão. Com a sociedade de uma maneira geral, com o sistema artístico - e teatral - em particular..Aos 70 anos, o encenador, que há três anos se despediu do Teatro da Cornucópia, a companhia que dirigiu durante mais de 43 anos, e que já antes se tinha despedido dos palcos devido à doença de Parkinson, tem dificuldade em movimentar-se mas o seu discurso mantém-se intacto. A voz tranquila, o pensamento claro. A sinceridade desarmante: "Agora ainda me sinto muito mais livre, pois tenho muito pouco tempo de vida ativa, porque infelizmente esta doença progride. Representar já me custa muito, ainda penso bem mas para me deslocar já começo a ter problemas. Portanto, quero aproveitar para ir o mais longe que puder", diz aos jornalistas. Confessa que pensa na morte sem medo mas com pena de deixar aquilo que tanto gosta de fazer. Quer, portanto, aproveitar para continuar a fazer teatro enquanto conseguir e isso lhe der prazer. E para dizer a todos o quanto o entristece "esta filosofia das artes do espetáculo que está a baixar o nível de toda a atividade teatral"..Para fazer este espetáculo, que parte de Camilo Castelo Branco e no qual facilmente reconhecemos o tom farsesco e aquele humor apenas aparentemente leve a que Luís Miguel Cintra nos habituou, o encenador concorreu em nome próprio a um apoio pontual da Direção-Geral das Artes. Quando os ensaios começaram, no início do outubro, ainda não eram conhecidos os resultados desses concurso. Entretanto, os resultados provisórios já dão algum alívio aos produtores, a Companhia Mascarenhas-Martins e o Museu da Marioneta, mas ainda não há dinheiro..Criar nestas condições não é fácil, como o sabem todos os que trabalham nas artes em Portugal. No caso de Luís Miguel Cintra, esta é apenas mais uma situação a juntar a todas as outras. "Foi muita coisa ao mesmo tempo", lê-se no texto que Cintra escreveu sobre o espetáculo Canja de Galinha (com Miúdos) e no qual - tal como fazia nos textos Este Espetáculo que escrevia para cada nova produção da Cornucópia - fala aos espectadores das suas motivações, do processo de trabalho e do espetáculo que se apresenta. Foi, então, muita coisa: "A perda em pouco tempo do convívio de muita gente amiga que morreu, e, com o fim do Teatro da Cornucópia, uma espécie de amputação por nos vermos impossibilitados de continuar a usar o instrumento de trabalho que ao longo de tantos anos tínhamos vindo a conseguir pôr em funcionamento com tão poucos recursos financeiros, o Teatro do Bairro Alto e a sua programação, e nem sequer o podermos legar a outros", escreve o encenador, referindo-se à tristeza provocada pelo fim da companhia..Quando conversamos, percebe-se que ele não se quer prolongar sobre este assunto, mas não evita o desabafo sobre o modo como tudo aconteceu: "Demorámos tanto tempo a construir aquela casa e depois houve um desprezo por aquilo que ali estava, como se fosse uma coisa de velhos. Um ferro-velho." "Ainda hoje", escreve Cintra, "tudo isso me provoca uma enorme sensação de angústia, sensação de quem esbraceja, mas, por mais que faça, vai-se afogar.".Cumplicidade precisa-se."Os espetáculos que tenho feito, sem a companhia de Cristina Reis e desde que a Cornucópia fechou, são tristes, são feios" - é com esta quase declaração de derrota que abre o texto sobre o espetáculo. Desde o fim da Cornucópia, Luís Miguel fez Um D. João Português (2017-18) e Ermafrodite (2019), para os quais, tal como acontece com esta Canja de Galinha, teve muito menos recursos do que gostaria. "Já não passa pela cabeça de ninguém desejar fazer um espetáculo com cenário, porque não é possível, significaria que as pessoas não iriam ganhar dinheiro nenhum", lamenta-se..Não se trata só de optar entre pagar aos atores ou ter um cenário construído de raiz mas do modo como as condições de produção limitam a liberdade artística e por, em última análise, a escassez de meios "pôr em causa a própria natureza artística dos espetáculos", diz. A falta de dinheiro começa por afetar as produções ao retirar-lhes tempo - tempo, primeiro, para ensaiar e para montar o espetáculo e, depois, tempo para partilhar os espetáculos com o público. "Uma coisa fundamental que está a desaparecer no teatro contemporâneo é a cumplicidade: cumplicidade dos atores entre si e cumplicidade com o público", diz Luís Miguel Cintra.."Os espetáculos são produzidos com cada vez menos tempo, mais superficialmente, os próprios atores perdem qualidades que têm porque têm de ter um mecanismo automático de produzir representação o mais rapidamente possível", diz. "Os atores têm tendência a sentir-se isolados, como as pessoas na sociedade também se sentem, portanto cada um a puxar por si, todos ao mesmo tempo, cada um contribuindo com um esforço individual. E eu acho que o que é engraçado é o jogo entre as pessoas. E acho que uma das coisas fundamentais no teatro é justamente o que se chama a contracena, ou seja, a gente fazer o nosso jogo no jogo da outra pessoa. Isto é uma coisa que hoje em dia se tem muita dificuldade em fazer", explica Cintra..Ele tenta lutar contra isso, mas, "atualmente, as pessoas não têm a certeza se vão ser pagas ou se não vão ser pagas, e eu percebo que não podem comprometer-se com um só projeto, têm de arranjar outras coisas que lhes deem dinheiro", resigna-se..Ao mesmo tempo, "um dos crimes que se estão a fazer ao teatro, também por razões económicas, é fazer salas muito grandes e fazer muito poucas vezes cada espetáculo. É considerar que o público vai e é anónimo, é um comprador de bilhete, não interessa quem é, e depois os atores não sentem a proximidade e a ligação com o público, é só uma ligação interesseira."."Há uma vontade do sistema político de estupidificar as pessoas. Tornarmo-nos meramente técnicos, funcionários absolutos do funcionamento da sociedade e o menos criativos possível. Não há espaço nenhum para a imaginação", diz-nos Luís Miguel Cintra. A liberdade dos criadores "está muito condicionada e os limites à liberdade estão a ser perigosamente interiorizados pelas pessoas"..O resultado disto é visível nos espetáculos que são produzidos. "Tenho a sensação de que uma das principais funções da atividade artística, a de permitir e provocar inteligência, aprendizagem, discussão, cumplicidade, está esquecida, ou é mesmo combatida pelas condições de produção que à partida condicionam a criação artística", escreve o encenador. "Os espetáculos tendem a não ter nenhum efeito vivo como acontecimento gerador de cultura, de pensamento, nos espectadores." O público acaba por tornar-se menos exigente. "Desconsola-me isto tanto, tanto", conclui..Esta canja: o prazer de continuar a fazer teatro."Uma canja é aquela sopa que se dá a quem tem problemas de estômago, uma úlcera, quiçá porque tem maus fígados, ou uma simples gastrite, ou porque já enjoa tanta piza e tanto hambúrguer. Nem mais! É talvez por isso que este espetáculo se chama assim..." Ou então o título é "só uma brincadeira", propõe Luís Miguel Cintra, uma "técnica de publicidade"..Para fazer esta canja, o encenador juntou duas peças de Camilo Castelo Branco - Entre a Flauta e a Viola e Patologia do Casamento - e mais uns excertos de outros textos do mesmo autor. A ação decorre numa estalagem em Barcelos, em pleno século XIX, onde se cruzam meninas casadoiras e outras que nem por isso, e rapazes mais ou menos apaixonados. "Há uma personagem, que é o Cínico, que eu identifico com o Demónio - que é o Duarte Guimarães que interpreta, com uma ambiguidade sexual que já estava na peça mas mais dissimulada - e que no fundo é o protagonista e a voz do próprio Camilo: faz filosofia contra o casamento e explica que detesta as mulheres porque teve uns desgostos de amor muito graves. Há assim um tom ligeiramente rasca", conta Cintra, explicando como gostou do "ambiente de diversão pura" que perpassa pelos textos de Camilo, ao mesmo tempo que dá umas alfinetadas na mentalidade burguesa.."Juntei as duas peças mas sem grande preocupação de tornar isto arrumado, porque o carácter desarrumado e o discurso que não é lógico, seguido, fluente, são coisas que têm de entrar na vida artística", explica o encenador, que tentou trazer para o palco um certo caos. No espetáculo, diz, há quase "um lado de circo", com a presença de marionetas, cantorias, vozes - e uma breve aparição de Luís Miguel Cintra, que escolheu para o elenco um grupo de jovens atores que já conhecia, alguns ainda do tempo da Cornucópia. Os seus cúmplices são: Ana Amaral, Duarte Guimarães, Ivo Alexandre, Joana Manaças, João Reixa, Rafaela Jacinto e Sérgio Coragem..Brincadeira e jogo são palavras que Luís Miguel usa recorrentemente. "O que me move, perante uma atividade que em grande parte se tornou uma caricatura do teatro de que sempre gostei, é uma imensa necessidade de não desistir daquilo que é único no teatro: justamente o prazer que pode dar e o treino psíquico em que pode consistir o carácter lúdico e afetivo das relações humanas. Tento construir tentativas, exercícios, experiências, para a descoberta de novas cumplicidades.".O que ainda o move é o prazer que tem em fazer em teatro e as pessoas com quem gosta de o fazer. E, pelo caminho, o desafio de conhecer melhor o mundo e as pessoas que o rodeiam. Livre, porque já não tem de provar nada a ninguém sobre a qualidade do seu trabalho, Luís Miguel Cintra continua a perseguir o prazer e a inteligência. "O esforço que julgo importante é o de não tornar a realidade nossa inimiga, é tentar descobrir como tornar outra vez viva esta eterna necessidade de os seres humanos se reunirem com um trabalho que é jogo, construção, razão para viver." É isso que reivindica nesta fase da vida. "O que fizer agora é como se recomeçasse.". Canja de Galinha (com Miúdos) A partir de textos de Camilo Castelo Branco Um espetáculo de Luís Miguel Cintra Museu da Marioneta, Lisboa De 10 a 29 de dezembro terça a quinta às 19.00 sexta e sábado às 21.30 domingo às 17.30