Lucy no céu com militantes

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Lucille Ball, depois de cinco Emmys, duas estrelas no Passeio da Fama, uma Medalha Presidencial, um selo comemorativo, e vários recordes televisivos que ainda perduram, juntou-se em 2021 ao clube restrito de privilegiados (Zuckerberg, Jobs, Abbie Hoffman e o Presidente dos Estados Unidos) que mereceram a única distinção que realmente importa: serem transformados por Aaron Sorkin numa pessoa capaz de repetir muito depressa as palavras de Aaron Sorkin.

A ocasião é Being the Ricardos (disponível na Amazon Prime), a segunda longa-metragem escrita e realizada por Sorkin nos últimos dois anos, e um filme que continua a trajectória do anterior, numa pedalada histórica às arrecuas que submete o século americano a um processo de sorkinização em curso, complementado com instintos documentais que são uma espécie de versão platónica de um artigo da Revista Super Interessante. Onde Os 7 de Chicago nos mostrou os "loucos anos 60" (Hippies! Revolução! Cargas Policiais!), Being the Ricardos dá-nos os "conservadores anos 50" (McCarthyismo! Televisão! Valores Patriarcais!). Não é garantido que o fim de uma trilogia se materialize nos anos 40, mas o coração palpita de entusiasmo ao contemplar a hipótese de um guião de Sorkin sobre, por exemplo, a Conferência de Yalta: dezenas de assessores e secretárias em frenético rodopio por corredores, enquanto Churchill, Roosevelt e Estaline jogam xadrês hepta-dimensional e se insultam comicamente numa mistura de esperanto e versos de Gilbert & Sullivan.

A acção de Being the Ricardos foca-se em três incidentes ocorridos entre 1952 e 1953, mas que o guião transfere para uma única semana "assustadora", que começa com tablóides a publicar insinuações sobre a infidelidade de Desi Arnaz (interpretado por Javier Bardem), e continua com um programa de rádio a divulgar suspeitas sobre as simpatias comunistas de Lucille Ball (interpretada por sessenta quilos de borracha sintética cuidadosamente esculpida à volta das cordas vocais de Nicole Kidman). Ao mesmo tempo, o casal tenta concertar a melhor estratégia para dar a patrões e patrocinadores a sua própria novidade bombástica (Lucy está grávida), tudo isto numa semana em que há um novo episódio para escrever, ensaiar e gravar.

A primeira cena instala-nos no território mais confortável de Sorkin: colegas de trabalho à volta de uma mesa, a discutir questões técnicas com o diálogo em velocidade 1.5x. Goste-se ou não, é nisto que ele é excelente: os momentos da história antes de o espectador saber quem é quem, que conseguem estabelecer, com máxima eficácia, um passado de intimidade profissional onde as personagens habitam um micro-universo em que todos partilham as mesmas referências, as mesmas credenciais, e se conhecem tão bem que é frequente acabarem as frases uns dos outros. É um modo de diálogo tão artificial e estilizado como um protagonista de Raymond Chandler a afogar-se em fumo de tabaco, mas está longe de ser um talento menor, ou fácil de imitar, e os efeitos locais que produz são bastante agradáveis ("Problemas em casa?" "Eu até gostava de ter problemas em casa, mas o meu problema não passa muito tempo em casa".)

Os problemas do espectador também costumam chegar a casa a partir daqui. Na escala de pureza Sorkin, em que num extremo estão os guiões de Moneyball e The Social Network (ambos devidamente adulterados por outros adultos), e no extremo oposto estão as cenas 100% Sorkin em que alguém ralha com Deus em Latim, ou em que um piloto comercial é informado da morte de Bin Laden ao som de violinos, Being the Ricardos estará cumulativamente algures lá para o meio.

Como qualquer biopic de artistas (um formato que parece especialmente fadado para a banalidade e o lugar-comum), este também desperta as questões habituais: qual é o público-alvo aqui, exactamente? E o que é que se pretende dar-lhe? Lucille Ball inventou, mais ou menos, aquilo a que se convencionou chamar a sitcom moderna, o que seria sempre um facto pertinente em qualquer história das formas de entretenimento. A partir daí, há duas maneiras de saber, e de contar, essa história. Uma é a diligente recolha de factos, dúvidas, ambiguidades e contradições, e a melancólica conclusão de que as coisas podem ou não ter acontecido de certa maneira. Outra é a impudente mitificação do típico biopic, que costuma sintetizar uma fábula sobredeterminada a partir de uma mão-cheia de palavras-chave, e tratar o mais inócuo incidente como fulcral numa vasta mitologia corporativa - os andaimes da auto-estima institucional que qualquer profissão vai construindo à sua volta.

É essa a opção de Sorkin, mas, mais do que aquilo que fez com Zuckerberg e Jobs, os melhores pontos de comparação talvez sejam The Newsroom e até Studio 60, a curta e cancelada série que escreveu sobre os bastidores de outra comédia televisiva (uma versão fictícia de Saturday Night Live). Parte do problema dessas duas semi-catástrofes é que Sorkin pressentiu correctamente o sentido hipertrófico da sua própria importância partilhado pelas duas instituições que retratava - a imprensa e a "comédia" - mas em vez de usar os mecanismos do humor para parodiar (mesmo que com afecto) esse desproporcionado amor-próprio, usou-os para tentar criar a ilusão de que ele era inteiramente justificado.

Em Being the Ricardos, Sorkin volta a fornecer ampla margem de manobra à sua crença absoluta no fascínio da incursão nos "bastidores" - uma crença que consegue a proeza de ser ao mesmo tempo condescendente e provinciana, presumindo que nada deslumbra mais os "turistas" do que a possibilidade de uma visita guiada aos mistérios de uma ordem sagrada. A ordem em questão é, novamente, a comédia televisiva, e embora Sorkin seja capaz de executar bons momentos de comédia, essa execução tende cada vez mais a ser rígida e esquemática. As melhores piadas do guião (e são poucas) parecem menos piadas do que explicações de como funciona uma piada feitas em PowerPoint por alguém sem uma pinga de sentido de humor, mas que é um génio a preparar PowerPoints. As cenas que mostram Lucille a refinar uma sequência burlesca são particularmente pouco imaginativas: a personagem cai num demorado transe hipnótico até ver a comédia a acontecer na sua cabeça, enquanto o resto do elenco mantém um silêncio decoroso. A construção colectiva de momentos de humor clássicos (um tema potencialmente interessante para dramatizar) é reduzida a uma burocracia mecanizada de inspirações inacessíveis e respeitinho hierárquico.

O que essas cenas penosas demonstram é que Sorkin continua sobretudo intrigado pela mesma questão fundamental: o que é um "génio"? A sua resposta também continua a ser a mesma. Um génio é alguém muito talentoso, cujo talento se manifesta de modos coincidentemente parecidos com os talentos que Sorkin julga possuir, e que tende a florescer (e sobressair) em ambientes específicos: espaços onde se pratica uma certa competência ríspida, um certo profissionalismo severo, uma competitividade agressiva, mas leal, sem paciência para floreados, mas sempre com sentido de humor, ou melhor, com "sentido de humor": um atributo que se mede exclusivamente pela drástica redução do intervalo temporal entre deixa e contra-deixa.

Algures no interior de Being the Ricardos estão dois ou três mini-filmes bastante melhores do que o filme que os absorveu, um filme que acaba por afunilar para o mesmo tipo de becos sem saída presentes em todos os guiões de Sorkin: cenas que servem apenas para determinar tabelas classificativas de talento, determinação essa que é sempre exclusivamente retórica. Alguém informa em voz alta a pessoa "mais talentosa" de que ela é a "pessoa mais talentosa". Outra pessoa é a "mais engraçada", portanto alguém declara em voz alta que ela é a pessoa "mais engraçada". A única pessoa simultaneamente mais engraçada que a pessoa "mais engraçada" e mais talentosa que a pessoa "mais talentosa" é a pessoa especial, e todos concordam que a pessoa especial é mesmo uma pessoa muito especial. A pessoa especial vai de seguida ter imensa razão para outras salas repletas de pessoas erradas, que também não têm outro remédio senão reiterar que tudo aquilo é extremamente importante, e engraçado, e especial, e portanto é o que continuam a fazer até aos créditos finais.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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