Lucia Berlin. Por mais fascinante que seja a sua vida, "a história é que conta"

Acaba de sair a edição portuguesa de <em>Anoitecer no Paraíso</em>, nova coletânea de contos inéditos da americana Lucia Berlin (1936-2004). O escritor José Gardeazabal e a tradutora Ester Cortegano dão algumas pistas para entrar na sua obra
Publicado a
Atualizado a

"O ponto é: se eu a contasse, mesmo da minha perspetiva (objetiva ou não), a história da Lucia seria proclamada como realismo mágico. Nunca ninguém acreditaria nesta merda." Quem o escreve é Mark Berlin, o mais velho dos quatro filhos de Lucia Berlin (1936-2004).

É com esse texto que abre Anoitecer no Paraíso (ed. Alfaguara), nova coletânea de contos da autora americana até aqui inéditos. Muitos descobriram Lucia (deve ler-se como se houvesse um acento no "i") Berlin com a reedição de Manual Para Empregadas de Limpeza, publicado em 2015, e que chegou a Portugal no ano seguinte.

É difícil dizer o que se descobria ou redescobria então. Berlin fala-nos nos contos como se estivesse sentada frente a frente connosco, noite fora, a contar histórias. Porque "a história é que conta", dizia ela, e escreve-o o seu filho Mark, que morreria no ano seguinte à sua morte. Então é frente a frente que ela nos diz o que aquele disse, e aquela, e a música que passava na rua no preciso momento em que tudo acabou e a vida seguiu o seu curso.

Além da musicalidade da sua escrita, carregada de contradições em que o cómico se junta de forma tantas vezes desconcertante ao trágico, há uma força que vem de frases tão simples como "Come on, baby, don"t you go down", proferida numa clínica de reabilitação onde os pacientes assistiam como que em comunhão ao célebre combate de boxe Sugar Ray Leonard vs Benitez. Benitez, já se sabe, aguentou-se como um herói num combate em que era mais fraco.

Em Anoitecer no Paraíso reconhece-se a Berlin de Manual Para Empregadas de Limpeza. Lá está a ingenuidade das raparigas no primeiro amor, a mordacidade de Berlin, a comicidade, a quantidade de sons e pormenores visuais que nos oferece, e a forma como a sua própria vida atravessa as diferentes histórias, tal como acontecia no Manual, ainda que com nomes diferentes.

No próximo ano a Alfaguara publicará ainda a tradução portuguesa de Welcome Home: A Memoir with Selected Photographs and Letters, que permitirá a quem estiver interessado cruzar os pontos autobiográficos de Berlin com a sua ficção.

Escrever como quem fala a um membro da família

Era a essa história, a da sua vida, que Mark Berlin se referia como passível de ser "proclamada como realismo mágico". A história de como o seu primeiro cigarro foi aceso pelo príncipe ismaelita Ali Khan, ou de como em permanente mudanças geográficas criou os quatro filhos quase sempre sozinha, com os conhecidos problemas de alcoolismo, trabalhando como professora de liceu, telefonista, rececionista de hospital, empregada de limpeza, ou assistente de médico. E, claro, ao mesmo tempo escrevia.

As variações geográficas, aliás, herdou-as logo da infância. Filha de um engenheiro de minas, passou os seus primeiros anos entre o Idaho, Kentucky e Montana. Quando o pai foi combater na Segunda Guerra Mundial, ela, a mãe a irmã mudaram-se para El Paso, Texas, depois da guerra para Santiago do Chile. Tudo isso transparece nas suas histórias.

Que o diga Ester Cortegano, tradutora da edição portuguesa de Anoitecer no Paraíso. "O livro é muito culturalmente marcado. Tem muita imagística própria daquelas regiões por onde ela andou. Tem longas passagens pelo Texas, Novo México... E ela fala de tudo isto. Exige um grande trabalho de pesquisa para saber exatamente aquilo de que ela está a falar", explica ao DN.

Cortegano conta que demorou até libertar-se da escritora, depois da tradução. "Fica o humor dela, a própria musicalidade da escrita, aquele colorido, o espanhol que ela introduz com muita facilidade no meio das histórias e toda a vida daquelas personas que ela cria e que são fascinantes. Algumas histórias faziam-me lembrar um bocadinho o Hemingway. Quando ela fala das bebedeiras e daquela vida mais boémia. Não só pela vida, mas pela maneira de contar, sem qualquer tipo de desculpa. Fala daquilo com toda a naturalidade. A sensação que eu tenho é como se ela estivesse a falar com membros da família dela, a contar histórias que a família até já conhece e portanto ela está a contar com a cumplicidade do leitor."

Outro admirador da sua escrita, em Portugal, é o escritor José Gardeazabal, autor de Dicionário de Ideias Feitas em Literatura ou o mais recente Meio Homem Metade Baleia.

"Não há lares em Berlin, há pessoas. Pessoas que ficam sozinhas no espelho, não ao espelho, índios norte-americanos com um sentido de humor igual ao das nossas mães. Nenhuma pessoa diz olá nem adeus, as pessoas estão. Connosco. Não há beijos de príncipes. Quando chegar, o príncipe vai oferecer um cigarro à mulher, para a ajudar acordar. Rezamos a diferentes velocidades e quando não compreendemos nada dizemos obrigado. Em Lucia o lar é ela." Na última frase de Gardeazabal ecoa a de Mark Berlin: "O lar era sempre ela."

Também para quem a lê parece ser assim. Mesmo quando se trata de assuntos dos quais as pessoas não falam, como ela escreve no conto Do Pó ao Pó, desta nova coletânea. "Não me refiro às coisas difíceis, como o amor, mas as desconfortáveis, como o facto de os funerais serem divertidos ou de ser empolgante ver edifícios a arder."

Quando lemos algumas passagens, parece-nos que só ela as poderia ter escrito. Como no longo conto Andado, em que uma jovem rapariga se envolve com homem mais velho, conhecido do pai, num fim de semana combinado justamente pelo pai. "- Não estou zangado consigo, mi vida. Arruinei-a e quase matei o meu melhor cavalo. Chamou por Gabriel. A voz dele ecoou pelo amplo vale, e depois o silêncio. Continuaram a andar. Arruinou-me? Estou arruinada? Por causa de um momento rápido e confuso como aquele? Será que toda a gente vai saber, ao olhar para mim?"

O plano de fundo, quando não é a América Latina por onde a própria Berlin passou, é aquilo que Gardeazabal descreve assim: "O mundo de Berlin é o da América pobre e periclitante, o das lavandarias e das enfermeiras, das empregadas domésticas que ligam o aspirador para não ouvirem a dona de casa. A América dos brancos pobres e dos mexicanos e negros e índios, em lugares onde todos se tocam. É a América do trabalho duro e mal pago que obriga os trabalhadores à humanidade." E é nessa humanidade, por mais terrível que por vezes seja, que Lucia Berlin os capta.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt