Aterram em cidades onde nunca puseram os pés sem conhecer ninguém, sem um amigo, um familiar. Levam os filhos pela mão, muita vontade de esquecer o passado e de viver em vez de sobreviver. Mas preferem que seja assim porque não querem correr o risco de voltar a dar de caras com o homem que as agrediu ou tentou matar - mesmo que esta opção lhes custe o desenraizamento, o isolamento..Estas mulheres nem sempre têm trabalho, ou se o têm, auferem salários muito baixos. O preço das rendas quase lhes corta o sonho de recomeçar. Mas não desistem. Histórias de resiliência contadas pela Mónica, pela Ivone e pela Sónia. Histórias que também provam que é possível refazer a vida e voltar a sorrir..Mónica: mais uma vez a recomeçar.Para se perceber a andança que tem sido a vida de Mónica, 41 anos, seria mais fácil colocar pioneses no mapa. Os filhos estão matriculados na sétima escola, para mais um recomeço, a 500 quilómetros da cidade onde hoje vivem numa casa de abrigo para vítimas de violência doméstica.."Estou cansada de recomeços, de perder." Faltam poucos dias para fazer as malas e Mónica depara-se com uma dualidade de sentimentos: tem medo do que aí possa vir numa terra onde (mais uma vez) ela e os filhos não conhecem ninguém, mas tem esperança de que seja desta que encontram um rumo, segurança, sem terem de fugir do homem que já a tentou matar e que, da última vez, entrou em sua casa e correu todos à pancada, a ela e aos quatro filhos..Foi no ano passado que a cena de violência aconteceu. Quando os cinco já pensavam que tinham encontrado a estabilidade que tanto queriam, depois de viverem durante um ano numa casa de abrigo onde entraram em 2013. A saída da casa foi tempestuosa, foram expulsos porque Mónica acusou outra mulher de lhe ter roubado pertences e dinheiro e quis reaver o que era seu. Deram-lhes dez dias para sair..Uma amiga que estava em França entregou-lhe as chaves da sua casa. Estava longe de ter as condições ideais: o telhado estava abatido e quando chovia entrava água, a casa de banho só tinha acesso pelo exterior, os tacos estavam soltos... Foi o que conseguiu arranjar. O preço das rendas destrói qualquer sonho de ter uma casa em condições para uma mulher com quatro filhos que trabalha a dias. "Era um teto para me enfiar com os meus filhos.".A habitação é uma das grandes dificuldades que estas mulheres encontram depois de sair das casas de abrigo para recomeçarem a vida, muitas vezes a centenas de quilómetros das suas terras, longe dos amigos, da família e sem trabalho. Em suma, sem raízes. Daniel Cotrim, psicólogo da APAV, lembra que além do preço das rendas há outro fator que dificulta o acesso à habitação: o facto de muitas destas mulheres no passado terem contraído empréstimos com os seus companheiros, que entretanto deixaram de ser pagos e que as atira para a lista negra do Banco de Portugal. "Costumamos dizer que estas mulheres não recomeçam do zero mas do menos quatro", diz..O trabalho é outro grande problema: se muitas o perdem quando abandonam as suas terras para ir para casas de abrigo mais longe, poucas são as que conseguem a mobilidade, porque esse é um benefício sobretudo dos trabalhadores do Estado..Mónica não tinha dinheiro para pagar uma casa em condições, mas era uma oportunidade que tinha de agarrar para conseguir a sua autonomia. Das 09.00 às 17.00 trabalhava como doméstica e das 19.00 à meia-noite numa cozinha de restaurante. Chegava à uma da manhã a casa e levantava-se às sete. Entre a saída de um emprego e a entrada no outro comprava o que seria o jantar dos filhos no dia seguinte. A sua sorte era o filho mais velho, de 15 anos, que cuidava dos três irmãos mais pequenos. Este é outro dos problemas que estas mulheres enfrentam, não ter com quem deixar os filhos, pois quando saem das casas de abrigo vão viver para sítios onde não conhecem ninguém..Apesar das dificuldades, Mónica sentia-se independente. Mas o ex-companheiro descobriu onde ela morava e passou a ir lá a casa ver os filhos. Ausentou-se do país por dois meses e quando voltou já não conseguiu que os filhos regressassem a casa. "As crianças emagreceram drasticamente. Não tomavam banho, andavam sujas, o pai agia de forma negligente. Não me deixava levá-los a passear.".Até ao dia em que se meteu num táxi para os ir buscar. A menina tinha-lhe telefonado a dizer que o pai estava a dar uma festa e que tinham fome e frio. O pior estava para vir: o ex-companheiro foi a sua casa, partiu a janela para entrar e bateu violentamente em todos..Mónica e as crianças voltaram para uma casa de abrigo, para muito longe, mas saíram ao fim de alguns dias porque entretanto o filho, que é só seu, tinha atingido a maioridade. Lançado um apelo nacional, encontraram a casa que agora vão abandonar para ir viver para muito longe, onde não têm raízes, onde não conhecem ninguém..As crianças estão entusiasmadas com a mudança de cidade. A mãe tem receio porque está desempregada. "Sinto-me uma gata com os filhos que dá um salto no escuro. Estou com medo de não conseguir trabalho, de não suportar o isolamento", diz. "Vai ser uma rutura de laços outra vez. Os meus filhos fizeram amizades, por mais superficiais que sejam, nestes meses. Evito falar no assunto com eles. Falamos de ir embora, mas não da despedida. Mas eles falam daquela cidade como se fosse o meu porto seguro, o meu refúgio..Desta vez vai ter a casa com que sonhou - "não esperava tanto, muitas mulheres não têm metade disto" -, com quatro assoalhadas. A associação que gere a casa de abrigo vai ajudar a mobilá-la com o essencial. "O que faltar logo se vê." Mónica diz que gostou da sua futura cidade, mas não sentiu aquele clique. "Prefiro estar anestesiada. Vai ser outro começo. Mas quando apenas nós somos o rochedo, é complicado.". Ivone: "Não perdi nada, ganhei independência".Quando meteu a chave à porta da casa onde vive há três anos com o filho e a sobrinha, Ivone, 41 anos, sentiu que finalmente se abria uma nova fase da sua vida. Foi invadida por um sentimento que há muito não sabia o que era. "Senti uma felicidade tão grande, que não dá para explicar. Pensei: aqui ninguém me vai chatear, tenho o básico para eles e para mim, agora é só continuar a lutar pela vida". Para algumas pessoas, uma casa num bairro social pode não ser muito importante, mas para quem saiu da sua casa com duas crianças, apenas com algumas peças de roupa e os documentos, começar do zero era muito importante.".Começar do zero. Deixar para trás uma vida, uma relação de 11 anos repleta de violência física e verbal, de ameaças; deixar os poucos amigos que tinha, o trabalho nas limpezas. Virar as costas a tudo. Sobretudo à ameaça de morte do marido e à semana que lhe deu para sair de casa. Pediu ajuda, queria ir para longe, para não correr o risco de se deparar com o companheiro à porta..Ivone chegou com o filho e a sobrinha - de quem agora tem a guarda provisória - a uma casa de abrigo da APAV, ao anoitecer. Chovia nesse dia de maio de 2015. Tinha dito às crianças, agora com 11 e 10 anos, que iam dar um passeio. Na verdade, iam começar uma vida nova, a 150 quilómetros de distância, noutra escola, sem amigos, numa casa que Ivone nunca sentiu como sua.."Quando entrámos na casa de abrigo fomos apanhados de surpresa. Não pensava nada sobre o que poderia encontrar. Só queria resolver a minha situação. Deparei-me com o muro alto, a casa estava cheia de gente, não sabia que estavam lá outras mulheres. Mas a prisão já eu levava dentro de mim, o medo, a insegurança, o tormento por que passamos e que vem connosco, saímos da nossa casa mas isso acompanha-nos. Não sabia o que tinha pela frente, o que ia acontecer, mas tive de me adaptar.".Mas a vida de Ivone só começou mesmo a mudar quando ao fim de seis meses foi trabalhar. Ficou com o trabalho de outra mulher da casa que decidiu regressar para o marido. Trabalhava numa casa, tomava conta de uma idosa e ganhava o salário mínimo..Poupava tudo o que podia - na casa de abrigo tinham direito a comida, a cama e a roupa lavada. A ideia de refazer a vida começou a germinar. "Mas começou também o meu desespero com as rendas caríssimas." Foi então que ouviu falar das casas sociais camarárias e decidiu inscrever-se. Pediu uma casa com três quartos, um para ela e um para cada uma das crianças, e ficou à espera - em maio de 2016 entregaram-lhe as chaves de um T2 com uma renda de 4,19 mensais..Precisava de mobilar a casa e os 600/700 euros que tinha amealhado deram para comprar em segunda mão, na Remar, três camas e três colchões, uma mesa e cadeiras. A casa de abrigo deu-lhe fogão, máquina de lavar, frigorífico, exaustor e esquentador novos..Quando foi morar para o bairro social, a senhora de quem cuidava morreu e as horas de trabalho foram reduzidas. Passou a fazer mais limpezas para compensar o orçamento e andou nisto até setembro de 2017. Depois decidiu novamente que queria mudar de vida e inscreveu-se num curso da Santa Casa da Misericórdia. Queria geriatria, mas entraria para o curso de cozinha. Andou lá um ano e um mês - ganhava uma bolsa de 149 euros mensais, o passe e o ATL das crianças e teve de manter as limpezas para conseguir ganhar 350/400 euros.."Foi a altura mais difícil desde que saí da casa de abrigo", conta Ivone. Quando as horas de formação aumentaram e teve de deixar as limpezas, pediu o rendimento social de inserção..A felicidade por estar a começar uma vida nova não lhe dá espaço para se lamentar pelo estado do prédio onde vive, com uma entrada maltratada, os elevadores que às vezes não funcionam e a obrigam a subir oito andares. Mas a casa está em boas condições, apesar de uma infiltração que está a alastrar do quarto para a sala e para a cozinha. E gosta da multiculturalidade do bairro, sobretudo porque foi o primeiro que conheceu quando ia, aos fins de semana, visitar uma amiga da casa de abrigo. Nessa altura, ia à janela, olhava para a rua e pedia a Deus que lhe arranjasse ali uma casa.."Começar a uma vida nova não é fácil, estamos no zero, não temos nada. Mas é muito compensador porque vamos lutar por uma coisa que só é nossa. Não temos alguém a dizer 'isto é meu', e deixamos de levar porrada. Não perdi nada, ganhei a minha independência.". Sónia "Só pensava: o que vou fazer?".Sónia Grilo, 42 anos, não quer perder tempo com o que se passou. "A violência doméstica já toda a gente sabe o que é - pancada, troca de galhardetes, despersonalização, não há muito a dizer." Sobretudo entende que não vale a pena estar a falar nisso agora que refez a sua vida e perdoou o homem com quem esteve casada durante sete anos, que a maltratou mas que lhe pediu desculpa..Ficou dois anos na casa de abrigo onde entrou em janeiro de 2009 - se tinha decidido pôr um ponto final à vida que tinha até ali que fosse logo no início do ano. Foi um período difícil, confessa, a casa tinha muita gente, os fins de semana eram os dias mais complicados porque estavam lá todos, mulheres e crianças..Mas não se sentia capaz de enfrentar o mundo lá fora. "Como alugar uma casa, um infantário para minha filha que tinha 3 anos quando entrei na casa de abrigo?" Ainda teve seis meses de subsídio de desemprego. "Pensava: o que vou fazer? Aqui estou segura, tenho teto, não me falta nada, mas não posso ficar aqui a vida toda. E na casa diziam-me que agora tinha a oportunidade de escolher o que queria fazer.".Um trabalho de empoderamento que é feito pelos técnicos, conforme explica Daniel Cotrim, recapacitando as mulheres vítimas de violência de outros aspetos da sua vida. "Grande parte destas vidas têm um passado de sobrevivência. Mas também há um trabalho de desmitificar crenças, sem catequizar, como a ideia de que os homens são mais fortes, que são os homens que mandam e podem agredi-las", diz o psicólogo da APAV..Sónia começou a entregar currículos. Mas um acontecimento de quando tinha 15 anos indicou-lhe o caminho - já que não tinha sido médica como desejou, queria trabalhar no IPO para ajudar os doentes, como outros ajudaram a mãe quando teve cancro do útero..Foi ao IPO de Lisboa entregar o currículo. Não disse que estava numa casa de abrigo. "Não queria ser vista como uma coitada, isso incomodava-me. Nunca disse à minha mãe que era vítima de violência, ela desconfiava, mas nunca lhe dei a certeza, só soube no dia em que saí de casa.".Duas semanas depois, estava a ser chamada para uma entrevista. Trabalhou no IPO de julho de 2009 até abril deste ano. Porque decidiu outra vez agarrar as rédeas do seu destino e seguir uma nova vida: tirou cursos de reiki, massagem holística, toque quântico..Embora tivesse encontrado emprego, deparou-se com um problema para quem vive escondida numa casa de abrigo, longe da família e dos amigos: um horário por turnos. Tinha pedido um lugar de administrativa, porque o Exército deu-lhe equivalência de escriturária, mas só havia vaga para auxiliar de ação médica..A casa de abrigo, contra as regras, facilitou-lhe a vida e ficava-lhe com a filha quando trabalhava à noite - "não é comum as mulheres ficarem fora à noite por razões de segurança, estamos mais vulneráveis"..Ainda pediu para trabalhar de dia, mas só consegui uns anos depois. Entretanto, começava a fazer-lhe muita confusão o ambiente da casa. A ela, que tinha sido militar durante dez anos, ver quem não cumprisse as regras, mulheres que queriam voltar para os maridos depois de levarem pancada, não lhe entrava na cabeça. "Já vivia o problema de toda a gente, chamavam-me a missionária.".Mas alugar uma casa estava fora de questão para quem auferia o salário mínimo. "Andava revoltada, sentia-me culpada por não estar a conseguir." É então que entra na casa outra família com a qual começa a dar-se e que também não se encaixava naquele ambiente. Conseguiram uma casa para cinco pessoas, ainda na zona da capital. Viram sites de móveis em segunda mão, procuraram instituições que fizessem doações. Ainda conseguiu retirar alguma coisa da sua casa, de comum acordo, e a casa de abrigo também ajudou com os colchões. "Fomos com o mínimo.".As crianças cresciam e a casa tornava-se pequena. E Sónia começou a ser pressionada pelos irmãos para ir viver com eles para a Suíça. "Dei o grito do Ipiranga e fui morar sozinha." Já tinham passado quatro anos.."Se mudei a minha vida, se mudei a minha alimentação, se deixei de fumar, esta é mais uma coisa que tenho de pôr a andar. Se quero que a minha filha cresça com saúde mental não tenho de andar a esconder-me", pensava. Falou com o ex-marido, pediu-lhe que ficasse com a filha quando ela tinha turnos. Ele pediu-lhe desculpa, disse estar arrependido. "Para mim era ótimo, queria que se ligassem e que a minha filha não tivesse medo do pai.".Longe da família, tinha apenas um casal amigo - que não lhe fazia perguntas. Apesar de tudo, Sónia nunca se sentiu sozinha. "Fiz muitos amigos. A cada fase da vida conhecemos novas pessoas. Não é que as outras deixem de ser importantes, fizeram o seu papel e foram à vida delas.".Enfrentou grandes dificuldades neste período da sua vida, nomeadamente quando decidiu morar sozinha. Como iria pagar as despesas a ganhar 400 euros? Mas há outra que refere: "Todo o processo emocional que é trabalhado em nós enquanto vamos passando pelos entraves que se vestem de tantas formas à nossa volta.".Passaram dez anos. Sónia perdoou quem tinha de perdoar, diz que se reencontrou, refez a vida sentimental. Hoje conta a sua história a sorrir.