Lisboa, não sejas tirana

Não se trata de exigir uma cidade quietinha e bem comportada ou da reivindicação de uma imaginada "Lisboa antiga", sem arraiais, vida noturna, bares, festas, fado vadio, onde tudo se deitaria com as galinhas. Mas dá para não a transformar numa feira popular?
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Tive a sorte de veranear no Algarve desde o ano do meu nascimento, em 1964, e de ter a memória de uma Albufeira vintage, vilória de casas de cal com hippies a vender artesanato no largo, do perfume de maçã que nele ficava à noite das bancas de fruta do pequeno mercado diário de rua, das praias desertas de dunas selvagens que hoje serei incapaz de reconhecer no contínuo de urbanização desenfreada que as assolou, do silêncio quieto dos dias de calor.

Tenho também memória e desgosto do que se seguiu, e que segue até agora, na maioria das zonas do Algarve que fui percorrendo: ausência total de planeamento digno do nome, "empreendimentos" em concorrência para prémio do mais medonho, a multiplicação de comércios com nomes estrangeiros, dos menus "em estrangeiro" nos restaurantes, por vezes sem sequer carta em português, e da progressiva dificuldade em comer algo de parecido com comida da região à medida que os hamburgers, pizzas e fish & chips se impunham porque, achava quem os prodigalizava, era isso que "os turistas queriam".

Pensei, ou melhor, desejei, que todos os erros clamorosos cometidos e reconhecidos no Algarve iriam servir para evitar que alguma vez mais o frenesim de tentar agradar aos turistas destruísse de forma tão irremediável o território e a sua identidade - e portanto, ironicamente, o seu capital de atracão e de comercialização. Mas enganei-me. E desta vez não posso nem quero, como no caso do Algarve, fugir à frente da onda: Lisboa é a minha cidade e tenciono lutar por ela.

E como eu, muitos. Que estamos a atingir o ponto de rebuçado tornou-se óbvio esta semana, quando foi criado no Facebook o grupo Menos barulho em Lisboa, no qual vários habitantes do centro partilharam vídeos com o ruído inacreditável que chega às suas casas, de dia e de noite, vindo de focos daquilo a que costuma dar o nome de "animação".

Na origem do grupo está a aproximação das festas de Lisboa, cujos arraiais começaram a fazer-se ouvir no fim de semana passado, mas sobretudo o evento de uma regata da qual fez parte um barco "de som" que percorreu a margem do Tejo, para trás e para a frente, em permanente debitar de decibéis para toda a frente de rio (incluindo as colinas de Santa Catarina, Castelo e Alfama) até ao início da madrugada. A ajuntar à criação recente, de acordo com testemunhos, de uma espécie de discoteca ao ar livre no novo terminal de cruzeiros, em frente ao Campo das Cebolas. A isso os participantes do grupo acrescentaram outras denúncias, incluindo imagens e sons de um "roof top" estrepitoso na zona de Santos e de outras emissões regulares e comerciais de forte ruído na zona central da cidade, nomeadamente em esplanadas e espetáculos -- como o que tem lugar diariamente, a partir desta altura, durante dois meses e meio e duas vezes ao dia, terminando perto da meia-noite, nas ruínas do Convento do Carmo.

Não se trata - convém sublinhar -- de exigir uma cidade quietinha ou da reivindicação de uma imaginada "Lisboa antiga", sem arraiais, vida noturna, bares, festas, fado vadio, onde tudo se deitaria com as galinhas. Nada disso: como alguém disse no citado grupo, este foi criado por notórios boémios no virar das cinco décadas, que não poderiam, sem cair no ridículo, insurgir-se contra os boémios mais novos ou com outros gostos e hábitos. Tão-pouco se trata de vilipendiar o turismo. Está em causa, isso sim, a necessidade de bom senso e de algo essencial que tem faltado, na administração do ruído como noutras: ter em atenção que o centro da cidade, erigido em "sala de visitas" ou mesmo "de espetáculos", é um lugar onde vivem pessoas. E que o licenciamento, ou a promoção, pela autarquia, de determinadas atividades tem de ter obrigatoriamente isso em consideração.

Ter em consideração, por exemplo, que uma coisa é licenciar três dias de arraial, num fim de semana, outra licenciar 10, incluindo dias úteis (como está a suceder no Largo da Graça); que não é compreensível que se instituam regras para o ruído nos bares e discotecas, com medições de níveis máximos e exigências de insonorização, e que a seguir se permitam discotecas ao ar livre, roof tops, esplanadas e barcaças no Tejo aos berros todo o santo dia e até às tantas da manhã, sem qualquer barreira a conter o som - aliás pelo contrário.

Que não é admissível existir um regulamento municipal que interdita ruído, de obras e de música, a partir de certas horas e depois multiplicar licenças "especiais" que permitem martelos pneumáticos às sete da manhã de sábado e domingo e colunas de som em débito até altas horas (um dos exemplos dados no grupo é o do mercado de Campo de Ourique: quando os moradores ligam para a polícia a participar, é-lhes respondido que "têm licença especial").

Como se lê num parecer do Provedor de Justiça de 2012, intitulado Boas Práticas no Controlo Municipal de Ruído, "importa considerar que o ruído é, não raro, um efeito próprio ou colateral de uma atividade lucrativa, mas cujos custos são suportados por terceiros, alheios às receitas", e portanto que "a licença especial de ruído não pode ser considerada como a alienação municipal da tranquilidade pública, mediante a liquidação de uma taxa."

O facto, frisa-se, "de a licença conferir licitude a uma atividade que, de outro modo, representaria uma infração contraordenacional, não permite perder de vista o seu caráter excecional. De outro modo, corre-se o risco de a taxa a liquidar por conta da licença especial de ruído estimular o seu deferimento multiplicado, a fim de angariar receitas públicas, mas sem contrapartidas para os lesados."

Certificando que a esmagadora maioria das licenças especiais de ruído que examinou (respeitantes a todas as autarquias do país) não estavam convenientemente fundamentadas nem tão-pouco estabeleciam regras quanto ao nível de ruído admissível, as precauções exigidas para minorar o incómodo ou sequer a localização e duração exatas dos eventos, o Provedor advertia: "O deferimento de licenças especiais de ruído, ainda que em estrita conformidade com a lei, não isenta os municípios da eventual responsabilidade civil por prejuízos imputados a sacrifícios especial e anormalmente impostos."

A mensagem é clara: as câmaras não estão acima da lei, e não podem mercantilizar direitos fundamentais dos seus habitantes. Nem, decerto, furtar-se a prestar-lhes contas sobre as decisões que são tomadas e os afetam. Tal como todos os estabelecimentos são obrigados a exibir as suas horas de abertura e fecho -- por definição públicas -- a concessão de licenças especiais de ruído tem de ser publicitada e escrutinável.

O que significa que aqueles por elas afetados devem saber antecipadamente onde, quando e em que condições foi autorizado ruído anómalo e conhecer os fundamentos da decisão. Até para, se for caso disso, tomarem providências, desde ir dormir a outro lado - o Provedor chega a colocar a hipótese de em certas circunstâncias os promotores terem de encontrar alojamento alternativo para quem é manifestamente incomodado -- a manifestarem oposição pelos meios legais ao dispor.

Como em relação a tantas outras decisões camarárias que afetam a vida das pessoas - exemplo do corte de vias e praças, que em Lisboa quase nunca é, de modo eficaz, sinalizado antecipadamente, constituindo-se em "facto consumado"- exige-se informação, transparência e o princípio fundamental de tudo: respeito pelos cidadãos. Sem isso, não há governo democrático, mas tirania.

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