"Lisboa foi a Silicon Valley do fim do século XV"
Raramente Portugal aparece nas páginas do jornal Financial Times (FT) se não for por razões económicas, mas há pouco tempo juntou-se a essa justificação uma de âmbito histórico: Como Portugal criou o primeiro império global. Trata-se da investigação que o historiador britânico Roger Crowley publicou com o subtítulo atrás referido e com o título de Conquistadores.
Crowley virá a Lisboa lançar a tradução do seu novo livro no dia 12, pelas 18.30, no Padrão dos Descobrimentos, mas antes explicou ao DN porque motivo o FT se interessou no seu livro: "Porque explica o acordar do Ocidente para os tempos modernos protagonizado por Portugal, iniciando uma época em que a Europa se virou para os antigos impérios da China e da Índia como se verifica na atualidade". Até este Conquistadores, Roger Crowley sempre situou as suas investigações no Mediterrâneo, mas o facto de no último livro, Cidade da Fortuna, ter estudado a ameaça para o comércio das especiarias que foi para Veneza a chegada dos portugueses ao Oceano Índico "despertou-me curiosidade e fez-me sair dessa fronteira". Mas não fica por aí: "Recebi um email de um leitor português que lera o meu livro sobre Veneza e convenceu-me que escrever sobre os Descobrimentos portugueses seria um próximo passo fascinante. Tive pena em largar o Mediterrâneo, mas descobri um mundo da história global."
A era da globalização inaugurada por Vasco da Gama mudou muito?
Creio que a chegada de Gama a Calecute e o comércio de longa distâncias que os portugueses desenvolveram foi o ponto de partida para o nosso mundo atual globalizado. Agora, tudo está mais profundamente interligado mas o presente foi moldado a par e passo por esse pisar da costa da Índia em 1498. Que acabou com o isolamento da Europa e gerou o fim da ideia da autossuficiência ocidental.
Diz também que esta história do Descobrimentos está quase esquecida. Porquê?
Se voltarmos atrás um século, as traduções para inglês que se fizeram foram nessa altura suplantadas pelo interesse que despertou a imigração de italianos - especialmente genoveses - para os Estados Unidos, ao desenvolverem a ideia de Colombo como figura fundamental para se pensar o início dos Descobrimentos, com a sua viagem de 1492, o que fez esquecer parcialmente a contribuição portuguesa.
Como foi possível que Portugal saltasse de um pequeno país em 1415 para uma posição global?
Portugal era pobre, tinha poucos recursos naturais e população, por isso até agora nunca fui capaz de precisar o momento em que inicia a criação de um império global. Talvez porque fosse o primeiro país a fixar fronteiras, também porque teve visionários como Henrique O Navegador e o rei João II. Ter uma grande costa ajudou a desenvolver técnicas de navegação e houve uma grande contribuição do conhecimento científico dos judeus sobre matemática e cartografia. No final do século XV, Lisboa tornou-se o Silicon Valley dessa época, onde se desenvolvia o conhecimento mais avançado para a altura. Além de existir um programa de de exploração bem equacionado, tanto assim que cada vez que a NASA quer avançar num programa a espacial de longa duração cita sempre o caso português de progressão na costa de África até, finalmente, descobrirem o caminho marítimo para a Índia.
Os Descobrimentos foram uma revolução comercial ou também ao nível tecnológico?
Tem de ser visto como um todo: uma revolução na navegação e na cartografia, que permitia descobrir como unir o mundo fisicamente através de barcos, e ao mesmo tempo uma mudança radical no comércio. Em resumo, com os portugueses o mundo tornou-se global.
Que opinião tem sobre o peso do lado religioso nas Descobertas?
Para D. Manuel existia um forte sentido de missão religioso nos Descobrimentos. Ele via como um sinal de Deus o ter sido escolhido para governar e acreditava que um dos objetivos do seu poder era o de estrangular o islão e restaurar o cristianismo em Jerusalém. O que não aconteceria, por exemplo, com os holandeses posteriormente.
O livro foi traduzido na China. É por isso que o prólogo é sobre o navegador chinês Zheng He?
Nunca pensei que fosse haver uma tradução chinesa quando o escrevi, o que pretendia era mostrar as diferenças entre as grandes expedições marítimas chinesas e as portuguesas. É que a China queria mostrar a sua importância e de nada mais precisava, enquanto os portugueses, além da curiosidade, necessitavam de tudo.
Acredita mesmo nos barcos espetaculares dos chineses que Gavin Menzies revela no livro 1421?
Há uma grande controvérsia sobre os chineses terem sido os primeiros a chegar às Américas e a circum-navegarem o mundo. Muitos académicos ridicularizaram essa tese de Menzies por não apresentar provas documentais. Sou da opinião que precisamos de provas.
Os impérios holandês e britânico só existiram devido à "aventura" portuguesa?
É impossível fazer essa afirmação, mas Portugal certamente liderou e deu o exemplo a outros. Os holandeses aprenderam com os portugueses tudo sobre o comércio e os ingleses seguiram os seus passos, valorizados por uma marinha de grandes dimensões.
A missão teria sido cumprida sem homens tão beligerantes como Gama e Afonso de Albuquerque?
É difícil afirmar se Gama e Albuquerque conseguiriam ter estabelecido a posição comercial portuguesa na Índia sem o uso de violência mas, se tivesse de ajuizar o processo, diria quer não seria possível de outro modo a presença portuguesa lá. Antes de Gama, alguns mercadores chineses fora massacrados em Calecute e aos portugueses teria acontecido o mesmo. Perceberam que sendo poucos, ou tinha um posicionamento intimidatório ou nada conseguiriam.
Gama é descrito com fundamentalista contra o islão. É um livro oportuno no tempo que vivemos?
Acredito que se possa fazer paralelismos entre o choque entre o islão e o cristianismo nessa época e os tempos atuais, mas creio que é perigoso e errado fazer tais comparações. Gama é um cruzado, que está interessado em destruir o islão e expulsar os muçulmanos do comércio mundial. Agora é diferente e a reação do islão radical é mais contra o materialismo secular do Ocidente, que faz mais pelo domínio do mundo do que qualquer cruzada cristã.
Porque desapareceu este império?
O declínio do império marítimo português está fora do âmbito do meu trabalho, mas a explicação mais correta deve ser atribuída a pouca população para um projeto tão ambicioso. Ou, de um modo mais complexo, a atitude possível perante esses novos mundos ser tão medieval como moderna.
O livro recupera o papel de Portugal na História mundial?
Seria presunçoso da minha parte afirmar que o livro restaura os Descobrimentos, porque só cobre um período de três décadas dessa tentativa de controlar o Oceano Índico. Segue-se uma longa história sobre a influência de Portugal no mundo, que precisa de ser reconhecida.
Foi difícil confrontar-se com a língua portuguesa durante a investigação para este livro?
Desconhecia a língua quando iniciei o trabalho, mas aprendi o português contemporâneo mesmo que não a fale bem. Foi bastante difícil ler as velhas crónicas do século XVI, fundamentais para poder executar a tarefa. Talvez por essa razão o meu dicionário de português esteja a cair aos bocados.
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