Da janela da casa onde vive no Porto, o escritor brasileiro Lira Neto mira o horizonte, para além do Atlântico. Uma perspetiva curiosa para quem está acostumado a prestar atenção ao passado. Um dos maiores biógrafos do Brasil, foi quatro vezes galardoado com o Jabuti, o mais respeitável prémio literário do país, o último deles em 2014, com o segundo volume da trilogia que dissecou as virtudes e os pecados do mais emblemático presidente brasileiro, Getúlio Vargas. Biógrafo de dois ditadores - além de Vargas, Castelo Branco, o primeiro general do período da ditadura militar -, o nordestino que, aos 56 anos, elegeu Portugal como rota de fuga do governo Bolsonaro não vê o atual presidente, "um sujeito pusilânime", digno de ser biografado. A experiência dos profundos mergulhos nas entranhas da política brasileira, porém, permite antever que uma "era Bolsonaro", ainda que breve, possa estar perto do fim..Há sinais de que Bolsonaro está a perder o apoio político. O que a história da democracia brasileira ensina sobre os presidentes que viveram o mesmo? No modelo presidencialista brasileiro, todas as tentativas do executivo para estabelecer uma política de confronto ou de desdém em relação ao Congresso resultaram em fracassos. O "presidencialismo de coligação" ou "semiparlamentarismo" embute benefícios e aberrações. Exige o diálogo permanente entre os poderes, em nome de uma agenda de governo suprapartidária e consensual; mas torna o presidente refém de barganhas e interesses nem sempre republicanos de deputados e senadores. Todas as vezes que um presidente perdeu a sua base política parlamentar, seja pelo comportamento voluntarioso ou por simples inabilidade política, tornou-se incapaz de governar. Restou-lhe, como saída, a renúncia, como no caso de Jânio Quadros em 1961; o impeachment, sofrido por Collor de Mello, em 1992, e Dilma Rousseff, em 2016; ou mesmo ser alvo de um golpe clássico, como João Goulart, em 1964, e Getúlio, em 1954, que optou pelo suicídio para não entrar nos livros de História pela porta dos fundos..É possível estabelecer um paralelo entre a crise que levou ao fim da chamada "era Vargas" com o atual cenário político brasileiro? Há assimetrias abissais entre Vargas e Bolsonaro. As desidratações políticas de um e de outro decorreram de circunstâncias completamente diversas. Na verdade, se quiséssemos estabelecer alguma espécie de comparação entre os dois, melhor seria atentar no facto de que, na crise que levou Vargas ao suicídio, os seus adversários levantaram as mesmas bandeiras falaciosas que ajudaram Bolsonaro a eleger-se: o moralismo seletivo contra a corrupção, a fantasmagoria do perigo comunista, o patriotismo "verde e amarelo" mais rasteiro..Muito se comenta sobre uma possível renúncia de Bolsonaro e chegou até a circular entre os media o esboço de uma carta. Há abertura para um gesto desta natureza? Infelizmente, no atual cenário, não acredito numa renúncia de Bolsonaro. É verdade que ele tende a ficar cada vez mais isolado politicamente, falando apenas para um núcleo fanatizado e bastante barulhento nas redes sociais. Mas esse é exatamente o seu método: testar os limites da democracia, estabelecer o confronto discursivo, contra tudo e contra todos, como estratégia para manter sua base mobilizada. Irá radicalizar sempre. Os resultados disso são realmente imprevisíveis..Assim como Vargas, o apoio filial tem um papel fundamental para Bolsonaro. A filha de Vargas, Alzira, era a sua principal confidente e conselheira. Os filhos de Bolsonaro parecem desempenhar papel semelhante. A enorme diferença entre os casos é que Alzira era sensata, racional, equilibrada, inteligente. Contribuiu de forma significativa para a volta do pai ao poder, em 1950. Os filhos do atual presidente são o oposto disso: truculentos, impulsivos, desequilibrados e limitadíssimos intelectualmente. Terminarão por levar o pai à ruína..Para quem se debruçou sobre períodos de ditadura no Brasil, faz sentido dizer que o país vive numa democracia? Desde o golpe mediático-judicial-parlamentar que depôs Dilma, com a conivência do grande empresariado nacional, o Brasil não vive um estado de normalidade democrática. Costuma argumentar-se que "as instituições estão funcionando", mas na verdade mantém-se apenas uma aparência de normalidade, respeitando-se os ritos e formalidades legais, pois os golpes modernos não se dão mais com tanques e soldados na rua. As instituições estão corroídas por dentro. Bolsonaro aproveitou-se disso e só aprofunda essa corrosão. Estamos diante do imponderável. Difícil prever o que virá..Apesar da controvérsia, Vargas é figura incontornável na história do Brasil. Que lugar estará reservado a Bolsonaro? A memória de Vargas é até hoje objeto de uma disputa de narrativas históricas. Complexo, contraditório, ele encarnou ao mesmo tempo a figura do ditador sanguinário, do déspota esclarecido e do líder nacionalista a favor dos trabalhadores e contra os interesses das multinacionais. Impossível defini-lo de forma simplista, dada a sua multiplicidade de facetas. Bolsonaro é um homem raso, um indivíduo que está no nível intelectual da idiotia. Passará à história, sem dúvida, como uma dolorosa caricatura do que somos..Bolsonaro seria digno de uma biografia, portanto? Já biografei dois ditadores, Getúlio Vargas e Castelo Branco. Mas não sinto nenhuma vontade de biografar um sujeito pusilânime como Bolsonaro. Atualmente, prefiro investir a minha energia em outros projetos, como pesquisa para um próximo livro, sobre a história dos judeus sefarditas que, expulsos da Península Ibérica à época da Inquisição, chegaram ao Brasil via Amesterdão, à época da ocupação holandesa em Pernambuco e, de lá, rumaram para o pequeno entreposto comercial que viria a tornar-se a cidade de Nova Iorque.