Leonard Cohen e um amor perdido

Inédito nos cinemas, está aí nos videoclubes<em> Marianne & Leonard: Words of Love</em>, poema documental sobre a relação de Leonard Cohen e a sua musa, Marianne Ihlen. Um fascinante retrato de dois corações partidos.
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Estar perto da essência de uma musa é estar perto da essência de um génio. Essa poderia ser a máxima deste documentário sobre Leonard Cohen e a sua relação com Marianne Ihen, a mulher da sua vida e fonte de inspiração para a famosa canção So Long Marianne. Poderia se Nick Bromfield acreditasse na princípio machista de que por detrás de um grande homem está uma grande mulher . Não acredita e isso salva o filme da habitual lógica do lugar confinado da "musa".

Marianne and Leonard: Words of Love, filme mais badalado do último Porto/Post/Doc, é um retrato na primeira pessoa da história de amor de Marianne e Leonard. Primeira pessoa a começar pelo realizador, que conheceu o casal e manteve também um caso com Marianne. Tem material nunca dantes visto e examina como se conheceram e o período em que ambos viveram juntos em Hidra, uma ilha na Grécia. Vai daí até à passagem de Leonard Cohen de escritor a músico e segue até ao momento em que a sua fama se torna mundial. Obviamente, analisa também a queda do romance, embora sugira que tenha havido sempre uma ligação eterna entre ambos. Mas nem aí acaba e vai mesmo até ao fim da vida de Marianne, acompanhando em imagens de arquivo as suas últimas confissões. O tom é sempre mais emocional que frio e essa opção parece honesta.

Pelo meio, não escapa ao lado mais voyeur e tem a chamada "footage" dos tempos de boémia do cantor-poeta. Quem não for perito na biografia da lenda canadiana pode espantar-se pela exposição de factos pessoais que o caracterizam por um libertino na fronteira do predador sexual, sobretudo nos bastidores da digressão de Bird on a Wire. Há mesmo um depoimento de alguém próximo de Cohen a comprovar que era comum numa mesma noite acabar um encontro com uma mulher e combinar minutos depois a vinda de uma outra fã para o seu quarto de hotel.

O Leonard Cohen das digressões é visto aqui como alguém sem medo das experiências de drogas e de estados alterados. De forma não sensacionalista não se branqueia nada. Cohen tinha a noção que era sempre um homem focado por uma câmara mas nunca perdia a sua "coolness", nem mesmo nos momentos mais pedrados. E é nessa perdição pelas drogas que o fracasso do seu caso com Marianne ganha uma carga de conto triste, eventualmente perto de um romance literário que o próprio gostaria de ter escrito. Um Cohen digno de personagem romanesco preso numa teia de vida de sexo, drogas e rock n' roll, embora a montagem tenha sempre a sapiência de nos contextualizar com os seus traumas de frustrações literárias, memórias de um passado de família e de uma melancolia que nunca escondia. A ideia da identidade do cavaleiro errante está toda lá, mesmo quando às vezes se cai nos rodriguinhos algo televisivos do esquema do "era uma vez".

Nick Bromfield tira sempre o melhor partido dos "home videos", das reportagens esquecidas e das imagens que ele próprio fez de Hidra . Aqui e ali abusa das "cabeças falantes" , mas nada que estanque uma estética de "álbum" de família e onde as fotografias parecem descoloridas. Em termos de linguagem documental, assiste-se a uma autonomia interna do plano, sempre em recusa da mera função informativa. Mas perante a música de Cohen, impecavelmente retalhada, o filme nunca se substantiza perante aquilo que de mais trágico há numa relação amorosa: o seu fim. Talvez por isso, a história de Marianne e de Leonard tenha as palavras certas de amor que o título refere, não obstante parecer sempre uma tragédia consentida. Só que o trágico no dicionário de Cohen quer dizer balada. Em certos aspetos, Marianne e Leonard: Words of Love é uma balada de cinema que nos faz ficar apaixonados por este casal. Terna, intensa e de um outro tempo - foi assim a história de amor mais bonita de um homem que também se apaixonou pelo excesso. Em tempos do #MeToo, "ladies man" como Cohen já só são consentidos como memória distante. Neste caso, uma memória de boémia revisitada com um charme imperturbável.

Depois desta abordagem microscópica sobre relações entre artistas e musas, podemos seguramente olhar com outros olhos a complexidade das fontes de inspiração dos artistas masculinos.

*** BOM

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