Depois do anúncio da morte de Lemmy, o Rainbow Bar and Grill, em Los Angeles, ficou sem Jack Daniel's. Durante os últimos trinta anos, o lendário vocalista dos Motorhead tinha feito do bar, na Sunset Strip, a sua segunda casa e na madrugada da passada segunda-feira os fãs acorreram ao local e vestidos a rigor pediram a bebida favorita de Lemmy, a mesma que há um ano tinha trocado por vodka. Em entrevista ao The Guardian, explicara a mudança com "motivos de saúde", mas aos 69 anos ainda anunciava espantado que, aparentemente, "era indestrutível". Estava enganado - no passado dia 26 foi-lhe diagnosticado um cancro, tão raro como agressivo, e morreu passados três dias. O rock ficou de luto..Nunca aceitou o epíteto de padrinho do heavy metal. Os seus Motorhead eram uma banda de rock n'roll, as raízes estavam nos blues e as suas fontes de inspiração tinham sido os Beatles, que viu ao vivo ainda no Cavern em Liverpool, e Little Richard, o precursor do rock n'roll norte-americano. O resto chegou por acaso quando, ainda antes dos vinte anos, se mudou para Londres onde um amigo lhe tinha arranjado emprego como roadie de Jimi Hendrix..Sozinho tinha aprendido a tocar guitarra, mas nunca tinha deitado as mãos a um baixo quando foi desafiado pelos Hawkwind para assumir o lugar em palco. "Nunca tinha tocado num baixo. Antes de subir ao palco, o Nik Turner, essa fonte de sabedoria, deu-me um conselho para a vida - "faz barulho em Mi". E afastou-se", contou..[artigo:4956324].Bem ou mal, certo é que assegurou o lugar na banda onde haveria de ficar até 1975. Motivo do despedimento? Tinha passado cinco dias na prisão depois de ter sido apanhado com droga na fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá. Mas nem isso lhe travou a carreira na música, nem lhe causou qualquer limitação legal: as autoridades confundiram as anfetaminas com cocaína, a acusação foi mal feita e Lemmy acabou por escapar sem qualquer registo criminal. A sorte estava do lado do rock.."Padrinho" de todos os excessos.Dave Grohl, vocalista dos Foo Fighters e antigo baterista dos Nirvana, chama-o de "padrinho", em adolescente Lars Ulrich, baterista dos Metallica, fundou o clube de fãs dos Motorhead e hoje reconhece que foi Lemmy quem "o fez querer ser músico". Robert Trujillo, baixista, vai mais longe e diz que "sem Motorhead, os Metallica não existiriam". Ozzy Osbourne, dos Black Sabbath, garante que "nunca houve, nunca haverá outro, Lemmy era único", mas também dizia que "as regras de não fumar e não beber, não se lhe aplicavam". Resistiu até aos 70..Nos primeiros anos em Londres perdeu a namorada para uma overdose de heroína, a única droga que alguma vez renegou publicamente. Ganhou uma especial atração pelas anfetaminas e pela cocaína e no final da década de 70, quando surgiram os primeiros sinais de que o corpo não aguentava tanto rock n'roll, já lhe recusavam transfusões de sangue. "Tinham-me dito que o Keith Richards tinha ido à Suíça fazer o tratamento e queriam que eu fosse. Quando me fizeram as análises ao sangue, disseram que era tóxico e recusaram", contou no documentário Behind the Music, do canal VH1. Mas os excessos não se ficavam por aí. Célebres ficaram alguns números que anunciava com orgulho - que desde os 30 anos bebia uma garrafa de Jack Daniel's por dia e que pela sua cama haviam passado mais de mil mulheres. A confissão ficou famosa: "Nunca encontrei uma mulher que me fizesse parar de procurar a próxima".."A melhor má banda do Mundo".O começo não foi fácil. Depois de ter sido despedido dos Hawkwind, Lemmy procurou dois cúmplices para formar uma nova banda. O nome chegaria de uma música que tinha escrito - Motorhead era calão para o consumo de ácidos - e a receita seria simples: muito rock e muito rápido. Mas o sucesso tardou em chegar e mesmo herdando a editora dos Hawkwind, a United Artists, o primeiro disco custou a sair - a primeira proposta foi chumbada por não ter qualidade. "Éramos a melhor banda má do Mundo", confessou ao VH1. Desistir não era possibilidade e o homónimo disco de estreia haveria de sair em 1977. Dois anos depois, o primeiro grande sucesso - Overkill - e em 1980 o disco que os tornaria imortais - Ace of Spades. "Quando a fizemos nem nos apercebemos. Sabia que era boa, mas não tive a noção que era assim tão boa. Nem me lembro de grande coisa do que a inspirou", contou à Rolling Stone. Mas o riff ficou e os Motorhead ganharam definitivamente um lugar especial no coração dos fãs da música pesada, como se pode ver na última atuação da banda, em Portugal, no Rock in Rio, em 2010, que o DN acompanhou..[youtube:unFLp8lJ5K0].Sempre fora do livro das regras da indústria, Lemmy tardou em ser reconhecido. Só em 2005 e por uma versão de um original dos Metallica (Whiplash) venceu o primeiro Grammy e morreu sem nunca ter sido convidado para o Rock n'Roll Hall of Fame. Ainda assim, deixou o manual escrito para que outros mantivessem o rock vivo. "Eu sou o tipo que sempre gostou dos vilões da música, do Gene Vincent ao Keith Richards e ao Joe Perry, mas continuo a achar que nenhum deles chega perto do Lemmy", dizia, em 2009, Slash à Rolling Stone..E se o homem dos Motorhead nunca escondeu os vícios, também nunca deixou de explicar as regras do jogo: "Se queres ser uma estrela de rock, assume. As pessoas não querem ver o vizinho do lado em palco, querem um ser de outro planeta". Depois de vinte anos com diabetes, a viver com um pacemaker, e depois de já ter trocado o seu Jack Daniel's com cola por vodka e vinho, morreu aos 70 anos. Os fãs, anónimos ou estrelas de rock de pleno direito, dirão que só foi para casa.