Há três anos, a muito católica República da Irlanda foi o primeiro país a legalizar o casamento homossexual após um referendo (62% votos no "sim") e no ano passado elegeu um primeiro-ministro gay de origem indiana, Leo Varadkar. Mas esses laivos de liberalismo num país onde 78,3% dos cerca de cinco milhões de habitantes dizem ser católicos embatem numa das leis mais restritivas do mundo no que diz respeito ao aborto - ilegal exceto se houver risco de vida para a mulher e condenado com penas até 14 anos de prisão. Hoje, os irlandeses vão às urnas para dizer se querem ou não mudar isso..A maioria das sondagens apontam para uma vitória do "sim" no referendo para revogar a 8.ª Emenda da Constituição, que iguala a vida do feto à da mulher grávida e, na prática, trava qualquer aborto - mesmo em caso de violação, incesto ou malformação do feto. Contudo, o "não" tem vindo a subir e havia ainda uma média de 20% de indecisos, que poderiam alterar completamente o cenário. O aborto é ilegal desde 1861, mas esta emenda foi aprovada em referendo em 1983, quando havia receio de que a liberalização noutros países pudesse chegar à Irlanda..Em 1992, outras duas alterações foram aprovadas: a 13.ª Emenda permite às mulheres viajarem para outros países para fazerem abortos e a 14.ª que elas tenham acesso a informações sobre o tema. Só a partir de 2013 foi alterada a lei para estabelecer em que circunstâncias, quando a vida da mãe está em risco, pode ser feito o aborto. Em 2016, houve 25 abortos legais e 3265 irlandesas viajaram para Inglaterra ou País de Gales para terminar a gravidez. São nove mulheres por dia, não se sabendo qual será o impacto do brexit - poderão continuar a viajar e a ter acesso a este serviço? Outra opção têm sido as pílulas abortivas: em 2017, a organização não governamental Women Help Women enviou 878 para a República da Irlanda, mais 576 do que no ano anterior..Escândalos na Igreja.Apesar de ter tido um papel menor na campanha do "não", este referendo é um teste ao poder que a Igreja Católica ainda tem na Irlanda. Se, em 1999, 92% dos irlandeses diziam ser católicos, no censo de 2016 esse número caiu para 78%, graças também a uma série de escândalos. Em 2010, o Papa Bento XVI pediu desculpas pelos abusos sexuais perpetrados por membros do clero..Outro ponto negro na história da Igreja Católica no país foi o tratamento às "mulheres caídas", termo usado inicialmente para designar as prostitutas mas que com o tempo passou também a incluir as mulheres que ficavam grávidas fora do casamento. Muitas foram confinadas a abrigos geridos pela Igreja (conhecidos como Lavandarias Madalena), onde eram obrigadas a trabalhar como escravas. Estima-se que entre o século XVIII e o final do século XX, 30 mil mulheres tenham passado por estas instituições, tendo sido descoberta em 1993 uma vala comum com 155 corpos. Um caso que levantou o véu sobre o problema e levou em 2013 o então primeiro-ministro, Enda Kenny, a emitir um pedido de desculpas formais..No país que acolhe as sedes europeias da Google ou do Facebook, o referendo é também um desafio para as empresas tecnológicas, depois dos escândalos de uso de dados das redes sociais e de como essa informação foi usada para interferir em processos eleitorais. A Google, tal como o Twitter, anunciou que ia recusar qualquer publicidade relacionada com o aborto, enquanto o Facebook quis travar essa mesma publicidade vinda do estrangeiro. Contudo, os esforços não têm tido 100% de sucesso, segundo a Transparent Referendum Initiative, uma organização de voluntários criada para monitorizar os media sociais..P&R.Porque é que os irlandeses vão hoje às urnas?.> Os 3,1 milhões de eleitores irlandeses votam hoje para revogar a 8.ª Emenda da Constituição, que desde 1983 equipara a vida do feto à da mulher grávida e proíbe o aborto (na prática, ilegal desde 1861). O aborto é proibido em qualquer circunstância - incluindo violação, incesto ou malformação do feto - exceto em caso de risco de vida para a mãe. As mulheres que façam um aborto podem ser condenadas a penas até 14 anos de prisão. Por comparação, um violador é condenado, em média, a dez anos de prisão..Qual é a posição do governo?.> O referendo foi uma promessa de campanha do primeiro--ministro Leo Varadkar, que considera a lei "muito restritiva". Mas o Fine Gael, o seu partido, deu liberdade de voto aos seus deputados e ministros - e há divisões internas. O líder do Fianna Fáil, o maior partido da oposição, Michel Martin, é pelo "sim", mas também deu liberdade de voto. O Sinn Féin e o Labour querem revogar a emenda. O principal rosto da campanha é Amanda Mellet, obrigada a viajar para abortar um feto com malformação..E quem é que está a defender o "não"?.> Do lado do "não" estão associações pró-vida, muitas apoiadas por congéneres norte-americanas. Também a Igreja Católica é pelo "não", mas só nos últimos dias tem havido bispos a defender essa posição mais ativamente..Quando é que haverá resultados do referendo?.> Os irlandeses podem votar até às 22.00 de hoje e os votos só começam a ser contabilizados a partir das 09.00 de amanhã. Os resultados devem ser conhecidos ao final da tarde..Se ganhar o "sim", o que muda?.> É dada luz verde ao governo para legislar. O plano é permitir o aborto até às 12 semanas de gravidez, sendo possível até às 24 semanas apenas em caso de malformação do feto ou risco de vida para a mulher.