Foi divulgada há poucos dias a última sondagem da revista especializada britânica Sight and Sound que, de 10 em 10 anos (desde 1952), elege "o melhor filme de todos os tempos". Este ano, para grande surpresa da comunidade cinéfila, Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, da belga Chantal Akerman, surgiu no primeiro lugar dessa lista de referência resultante da votação de mais de 1600 especialistas, entre críticos, programadores e académicos. A admiração foi tal que se gerou mesmo nas redes sociais um debate sobre o politicamente correto que poderá ter determinado essa ascensão: é um filme com assinatura de uma mulher e quase desconhecido do grande público. Depois do reinado de cinco décadas de O Mundo as Seus Pés, de Welles, apenas destronado em 2012 por A Mulher Que Viveu Duas Vezes, de Hitchcock, agora Jeanne Dielman... E mais isto: Lawrence da Arábia saltou fora da dita consagrada lista dos 100 melhores filmes de todos os tempos..A sua ausência foi notada por vários sites de cinema, e não deixa de ser um dado revelador de uma nova política do gosto, capaz de ignorar uma das obras mais marcantes da cinematografia mundial, sobretudo no que a épicos diz respeito. Mas as mudanças de cânone são mesmo assim - e refira-se também que o seu realizador, David Lean, sempre colheu mais reconhecimento por parte dos seus pares do que da crítica em geral..A completar neste dia 60 anos da estreia, Lawrence da Arábia continua a ser aquela obra-prima que serve como exemplo na hora de se tentar explicar a alguém a importância do grande ecrã: não há outro lugar onde as imagens do deserto captadas por Lean possam revelar-se no seu absoluto esplendor senão a sala de cinema. A provar isso mesmo, em abril deste ano, o filme teve exibições no Porto e em Lisboa numa cópia digital restaurada 4K. Oportunidades de ouro em tempos de streaming, e numa altura em que os cinemas lutam para manter a sua relevância enquanto experiência única - uma luta que vem a ser travada preguiçosamente com a aposta homogénea em filmes de super-heróis..Não são tempos assim tão diferentes, em termos de conflito de ecrãs, daqueles que deram contexto a esta e outras obras épicas dos anos 1950/60. Aí, as grandes produções combatiam a pequenez do ecrã da televisão, que cada vez mais acomodava os espectadores em casa. Era preciso demonstrar que não havia nada que se comparasse ao privilégio de se assistir a um filme na dimensão de uma tela larga, com toda a riqueza de detalhe visual que esta permite. No caso de Lawrence da Arábia, para obter a maior moldura possível, David Lean e o diretor de fotografia, Freddie Young, escolheram o formato Super Panavision 70 mm. E para conseguir o efeito que se vê na famosa entrada em cena de Omar Sharif, através de uma miragem, foi utilizada uma lente especial de 482 mm, concebida especificamente para o filme e sem qualquer uso posterior (na gíria dos realizadores, ficou conhecida como a "lente David Lean)..Esta alusão aos aspetos técnicos de Lawrence of Arabia serve apenas para dar conta do perfeccionismo que moveu o realizador britânico naquela que será a mais estonteante empreitada da sua filmografia. Uma obra grandiosa cuja demorada produção em nada se assemelha ao dogma contemporâneo do digital. Eram os tempos em que, para se filmar o erguer do sol na imensidão do deserto havia uma equipa pronta, de madrugada, à espera para registar a beleza do fenómeno no momento certo....Não deixa de ser curioso que, sendo um filme tão confiante em todas as suas componentes artísticas (incluindo a portentosa banda sonora de Maurice Jarre), tenha nascido de um ligeiro impasse. Depois de realizar A Ponte do Rio Kwai (1957), Lean estava interessado em filmar um retrato biográfico de Mahatma Gandhi. Ainda foi escrito um primeiro argumento pelo colega e amigo Emeric Pressburger (após o fim da lendária parceria deste com Michael Powell), mas, insatisfeito com a ideia no papel, o cineasta acabou por transferir as energias para uma proposta do produtor Sam Spiegel, com quem tinha trabalhado no seu filme anterior. Essa proposta consistia na crónica humana do arqueólogo, aventureiro e oficial britânico que escrevera o célebre volume Os Sete Pilares da Sabedoria, com base nos seus feitos militares ligados à causa árabe em plena Primeira Guerra Mundial. Alguém que levou os sonhos ao limite. "Todos os homens sonham, mas não da mesma maneira. Os que sonham de noite nos recantos poeirentos das suas mentes acordam, de dia, para descobrir que era tudo vão; mas os que sonham de dia são homens perigosos, pois podem realizar os seus sonhos de olhos abertos (...). Foi o que fiz. Pretendia fazer uma nova nação", lê-se na edição portuguesa da E-Primatur..É esta criatura enigmática que vemos eternizada em Peter O'Toole - o próprio eternizando-se através dela -, com uma interpretação assombrosa da perda da inocência em direção ao delírio e furor do sangue. O'Toole era, à época, um ator praticamente desconhecido. Antes dele, foram considerados para o papel Albert Finney, Marlon Brando, Montgomery Clift e Anthony Perkins. Mas a história iria ser feita por este homem alto e esbelto de olhos azuis, muito bem acompanhado pelo árabe de Omar Sharif. Os dois envolvidos pelo feitiço do deserto que se traduziu em sete Óscares (incluindo melhor filme e realizador)..Na sua recensão de Lawrence da Arábia, no livro 5001 Nights at the Movies, a crítica Pauline Kael viu no Lawrence de O'Toole um herói "exuberante e poético", e no Ali de Sharif, "um herói simples", resumindo com muita graça o poder da combinação e contraste das duas personagens: "[Uma vez que] a maior parte do público não tinha a menor ideia do que faziam árabes e turcos na Primeira Guerra Mundial, ou quem era quem, ou o que tinham os ingleses a ver com isso, a questão suscitada pelo filme é: pode-se realmente mostrar acontecimentos históricos complicados e um herói complexo num filme-espetáculo? Felizmente para este espetáculo em particular, as plateias ficaram satisfeitas com a explicação de que os turcos eram mais cruéis que os árabes, e embora o Lawrence do filme também se tornasse cruel, lá estava o generoso Ali para assumir o lugar do herói." Omar Sharif que, três anos mais tarde, seria o protagonista de Doutor Jivago, outro clássico maior da obra de David Lean..dnot@dn.pt