"O inglês está hoje investido no papel de língua franca que permite aos mais diversos povos comunicar entre si. Mas isto acontece há apenas algumas décadas. O latim cumpriu a mesma missão durante mais de mil anos." Quem o diz é Delfim Leão, vice-reitor da Universidade de Coimbra, doutor em Cultura Clássica que, desta forma simples mas esclarecedora, põe em perspetiva a história dos idiomas no Ocidente. A responsabilidade por tamanha e tão prolongada importância vai toda para o "pragmatismo e a capacidade de organização dos romanos", que não se limitavam à conquista militar ou ao estabelecimento de feitorias comerciais. No período áureo do Império, a eficácia administrativa com que se ligava Roma a pontos tão distantes como a Península Ibérica ou a Judeia, a Germânia ou o Norte de África, ainda nos impressiona. Para Delfim Leão, a explicação não está tanto nas armas das legiões mas "na capacidade de integração dos povos conquistados, contrastando claramente com o que aconteceu nos impérios modernos". Faziam-no naturalmente "como estratégia de afirmação, mas, ao concederem amplos direitos de cidadania aos povos conquistados, garantiram o êxito da pax romana por vários séculos."."As palavras voam, os escritos permanecem".O processo de romanização dos territórios passava por uma autêntica refundação destes, que ia desde a organização administrativa à economia, da cultura ao direito. Acreditando piamente que "as palavras voam, os escritos permanecem", os romanos montaram a mais sofisticada máquina burocrática que o mundo já conhecera. O seu principal instrumento? O latim, que estava para a condução de ideias como a rede viária para a mobilidade de homens e mercadorias. Embora não fosse imposto oficialmente às pessoas que viviam sob o domínio romano (ao contrário do que fizera Alexandre, o Grande, que quis impor o grego como língua oficial nos seus vastos domínios, do Mediterrâneo à Pérsia) nem fosse determinante para a obtenção da cidadania, era conveniente ser fluente em latim devido ao seu elevado valor cultural, político, legal, social e económico. Este era obrigatório, sim, no serviço imperial, e era a língua usada no funcionamento do governo. Os éditos e as comunicações oficiais do imperador publicavam-se em latim, incluindo a regulamentação de leis locais que pudessem estar escritas noutras línguas, tal como as certidões de nascimento ou os testamentos de quaisquer indivíduos que tivessem cidadania romana, independentemente de serem falantes da língua imperial ou não..A conquista da Lusitânia após décadas de aguerrida resistência dos povos locais (que levou Júlio César a considerar que nesta parte do mundo havia um povo que não se governa nem se deixa governar) coincide com o reinado de Octávio César Augusto, primeiro imperador de Roma e fundador de uma dinastia que cultivava a ideia de Virgílio de que a fluência do latim permitia a um vasto mosaico de povos falar "por uma só boca". Na epopeia Eneida, dedicada à fundação de Roma, o mais celebrado escritor latino põe o deus supremo Júpiter a ordenar aos refugiados troianos que se instalavam na Península Itálica: "Manterão a fala e os costumes dos vossos pais e eu os farei latinos." Como? Falando a uma só voz, que é como quem diz, numa só língua..Como sublinha Delfim Leão, a importância administrativa e cultural do latim perduraria por muitos séculos após a queda do Império: "Ele está presente na maioria das chancelarias europeias, civis ou religiosas, durante a Idade Média, mas sobretudo será muito utilizado pelos grandes humanistas, cultores da tradição clássica, já em pleno Renascimento." São os casos de Erasmo de Roterdão, dos portugueses Damião de Góis e André de Resende. Luís de Camões e Miguel de Cervantes, embora escrevessem nas línguas nacionais, conhecê-lo-iam em profundidade..A importância, hoje.Tantos séculos depois, quem estuda Latim? Delfim Leão reconhece que, em Portugal (ao contrário do que aconteceu noutros países europeus, como a vizinha Espanha), este praticamente desapareceu do ensino secundário, "existindo nas nossas universidades apenas duas licenciaturas em Estudos Clássicos, em Coimbra e em Lisboa". Na primeira, onde leciona, há, no entanto, "um número crescente de alunos que procuram formação em Latim. São estudantes de Línguas Modernas, História, Direito, Medicina, Botânica, Filosofia (embora estes prefiram o Grego pelo papel que desempenha na etimologia). E também há um número crescente de futuros professores de Português que procuram essa formação"..As vantagens são muitas. "Um investigador de História que não saiba latim está impedido de estudar tudo o que seja anterior ao século XVI, a não ser que se contente com a abordagem de fontes traduzidas por terceiros", refere Delfim Leão. Mas para quem se dedica ao estudo de idiomas latinos, e não só, a capacidade de compreender a mecânica e a plástica destes sai reforçada: "Hoje falamos muito por metáforas e não temos plena consciência dessa importância. O conhecimento prévio do latim facilita imenso a aprendizagem de francês, espanhol, italiano, mas também inglês e alemão, que nos parece tão distante e que, no entanto, mantém uma característica latina, como são as declinações.".O fascinante deste universo é o facto de as línguas evoluírem em função do cruzamento da contingência geográfica dos povos com a sua história: "É verdade que o italiano, até pela proximidade física, é a língua latina que se mantém mais próxima da raiz, sendo, por exemplo, a única que guarda a vogal prolongada própria do latim, mas o português também não está longe", esclarece o professor de Estudos Clássicos. "Como a Lusitânia era uma região periférica, embora muito importante economicamente (fornecia cereais, mas também minérios ricos como ouro, prata e cobre), havia um cuidado redobrado com o latim que aqui falavam e escreviam os funcionários do Império." Mas, por mais cuidadosos que estes fossem na romanização das sociedades, os lusitanos não eram uma página em branco, sedentos das luzes de Roma: "Não sabemos exatamente que língua falavam os lusitanos, mas decerto tinha aportações dos povos que por aqui foram passando, como os celtas, os fenícios e os gregos." Senhores de uma identidade muito forte, como revelam vários testemunhos da época desde Júlio César a Estrabão, "é bem possível que tenham adotado o necessário latim ao seu próprio legado cultura"..O regresso aos clássicos está, pois, na ordem do Dia na Educação, tal como a urgência de revalorizar as Humanidades. Numa crónica publicada nesta semana na revista XL Semanal, o escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte rebelava-se contra a sucessiva desvalorização de toda esta área de estudos no seu pais, como no mundo ocidental, e contava, a propósito do latim, uma anedota passada na Espanha de Franco: "Mais desporto, menos latim. Que utilidade pode ter este na nossa época?", reclamava nas Cortes José Solís, deputado de Cabra, província de Córdova. Ao que Adolfo Muñoz Alonso terá respondido: "Serve, entre outras coisas, para que aos naturais de Cabra, como vossa excelência, se chame egabrenses e não outra coisa.".Si non è vero, è ben trovato - se não é verdade, é bem achado. Mas para Delfim Leão o estudo dos clássicos e da própria civilização romana tem muita coisa a ensinar-nos: "A marca que deixaram está ainda muito presente no mundo de hoje, desde logo na língua, mas também na administração, na religião cristã, que adotou o latim como sua língua mas também em alguns gestos eucarísticos, no direito, na rede viária que era extraordinária, uma vez que unia Roma a todos os pontos do Império, mesmo os mais distantes. Ainda hoje utilizamos muito dessas estradas." O professor de Coimbra vai ainda mais longe ao sublinhar a "tolerância religiosa e a permeabilidade à diferença étnica, infinitamente superior ao que veio a acontecer no nosso tempo." A escravatura existia, como em todo o mundo antigo, "mas estava mais ligada à condição de prisioneiro de guerra do que à diferença de raça", sublinha..Para Delfim Leão só temos a ganhar com a leitura de textos de autores como Estrabão, Tito Lívio ou Plínio, o Antigo, verdadeiras matrizes da civilização ocidental. De preferência, no original. Porque tem boca vai a Roma...