O Labour é o único grande partido britânico que nunca foi liderado por uma mulher. E, apesar de existirem duas na corrida à sucessão de Jeremy Corbyn - Lisa Nandy e Rebecca Long-Bailey -, o vencedor neste sábado foi mesmo o único candidato do sexo masculino, Keir Starmer. Os três tinham sido convidados a gravar o seu discurso de vitória mas será o de Starmer o que vai ser transmitido este sábado, com a pandemia de coronavírus a impedir a festa que estava prevista para aquele que se espera possa ser o virar da página no partido que teve, nas legislativas de dezembro, o pior resultado em mais de 80 anos..Quando Corbyn anunciou que ia deixar a liderança partidária, apelando a um debate interno entre os trabalhistas britânicos, o covid-19 era um problema só da China. Três meses depois, quando é conhecido o resultado da votação por correspondência, que terminou na quinta-feira, o cenário é muito diferente: o coronavírus está quase em todo o lado, com metade da população mundial em confinamento e o próprio primeiro-ministro britânico em isolamento após ter testado positivo. A pandemia será o primeiro desafio para o novo líder da oposição, com o Parlamento de férias por causa da Páscoa e a trabalhar nos mínimos após a aprovação de uma lei que dá a Boris Johnson poderes especiais para responder à crise sanitária - e que só será revista dentro de seis meses..Corbyn, que apesar da derrota eleitoral é visto favoravelmente por 71% dos militantes trabalhistas (segundo uma sondagem YouGov de janeiro), deixou um aviso ao sucessor. Numa entrevista ao Daily Telegraph, o homem que estava à frente do Labour desde 2015 alertou contra a ideia de um governo de união nacional. "Acho que devíamos desafiar o governo e desafiá-lo na resposta económica, desafiá-lo na segurança dos empregos, e essa é a forma de garantir um melhor governo e melhores decisões", afirmou Corbyn. "Se toda a gente se unir e disser "estamos todos juntos nisto, não vamos criticar-nos uns aos outros", isso é a negação do que a nossa sociedade democrática é", acrescentou..Apesar de 56% dos britânicos (sondagem Ipsos MORI divulgada na quinta-feira) acreditarem que a decisão de impor medidas de distanciamento social foi aplicada demasiado tarde no Reino Unido (só a 23 de março foi decretado o confinamento), o governo tem uma aprovação que não se via há uma década: 52% (sondagem YouGov de finais de março). O último balanço, divulgado nesta sexta-feira, mostra mais 684 mortes nos hospitais do Reino Unido por causa do coronavírus em 24 horas, num total de 3605 desde o início da pandemia. Há quase 34 mil infetados no país. Starmer (que numa sondagem YouGov de finais de fevereiro surgia com 53% das intenções de voto) tem sido criticado por não adotar uma posição mais crítica contra o governo de Boris Johnson, mas isso pode mudar agora que foi oficialmente ser declarado vencedor. Contudo, terá de ter cuidado para não parecer oportunista e estar a agir contra o interesse público..A colunista Katy Balls escreveu no The Guardian : "Mesmo se o NHS [o Serviço Nacional de Saúde britânico] evitar o colapso, os efeitos duradouros do coronavírus complicam tanto as promessas do manifesto conservador como a estratégia do Brexit. Como um deputado conservador pessimista disse: "O coronavírus rebentou com os planos do Boris Johnson para o governo, se o Keir Starmer for paciente, ele pode apanhar-nos mais tarde."".Starmer, que ganhou destaque como ministro-sombra para o Brexit mas cuja falta de carisma muitos lamentam admitiu que esta eleição terminou em "circunstâncias que ninguém podia prever". Mas, em vídeo divulgado após o fecho da votação interna, revelou-se também confiante de que o partido demonstrou união e ambição e que vai voltar a ganhar..Esquerda ou centro?.Numa mensagem de despedida aos militantes, Corbyn disse acreditar que o seu sucessor pode voltar a conquistar o poder para o Partido Trabalhista, mas apenas se continuar no caminho da "justiça social, da igualdade e do cuidado com o meio ambiente". Durante a sua liderança, Corbyn encaminhou o partido mais para a esquerda, atraindo milhares de novos militantes, nomeadamente jovens moradores de centros urbanos. Mas isso custou-lhe o eleitorado tradicional em dezembro, nomeadamente entre a classe trabalhadora nos até então bastiões do Labour do norte de Inglaterra..Um novo líder que vá demasiado para a direita vai alienar os novos eleitores - Tony Blair, o último a vencer uma eleição para os trabalhistas, é visto favoravelmente por apenas 37% dos militantes (sondagem YouGov), que nunca perdoaram as políticas neoliberais do New Labour (o termo é hoje quase tabu) ou o apoio à invasão do Iraque. Mas, se continuar a caminhar para a esquerda, o partido não conseguirá recuperar o eleitorado perdido e arrisca nunca mais voltar ao poder..Brexit e antissemitismo.Mas chegar ao balanço correto entre esquerda e direita não é o único desafio para unir o partido. É preciso não esquecer o Brexit. O tema que marcou durante anos o debate político britânico parece ter ficado para segundo plano com o coronavírus, mas 2020 é o ano decisivo para a saída do Reino Unido da União Europeia. Oficializado o Brexit a 31 de janeiro, depois de muitos adiamentos, Londres tem ainda de negociar com Bruxelas o que acontece após o final do período de transição, que acaba a 31 de dezembro - caso não haja um novo adiamento..A posição do Labour em relação ao Brexit sempre foi controversa, com Corbyn a defender no passado a saída da União Europeia (UE) e a não se empenhar como muitos queriam na campanha do referendo de 2016. Agora que esta saída é um facto, a oposição poderá contudo ainda tentar pressionar Boris Johnson a pedir uma extensão do período de transição, algo que o primeiro-ministro não parece disposto a fazer, com ou sem coronavírus. O impacto económico da pandemia poderá somar-se ao de um Brexit sem acordo ao nível da futura relação entre o Reino Unido e os 27 países da UE..Corbyn deixa outra herança complicada: a do debate sobre o antissemitismo dentro do partido. Apesar de sempre ter negado essa posição, o inquérito interno que mandou fazer revelou a existência "ocasional de uma atmosfera tóxica" no Labour, que levou muitos militantes judeus a virarem as costas - até deputados deixaram o partido por causa disso. Os três candidatos à liderança prometeram que a resposta ao antissemitismo será uma prioridade, mas ainda há muito caminho a percorrer para reverter a situação..Votação.A eleição do novo líder começou a 21 de fevereiro, quando foram enviados os boletins de voto. Os cerca de 580 mil militantes, incluindo mais de cem mil que se registaram desde a derrota eleitoral de dezembro, foram chamados a votar por carta, indicando a ordem de preferência dos candidatos. Se um deles não conseguisse a maioria dos votos, eram tidas em conta as segundas escolhas do menos votado. Na eleição participaram ainda quase 15 mil "apoiantes registados", que pagaram 25 libras para o poder fazer. O vencedor foi anunciado por correio eletrónico e através dos meios de comunicação social, assumindo imediatamente o cargo..Em relação ao futuro, Corbyn afirmou na mensagem de despedida: "Posso garantir que a minha voz não será calada. Estarei lá fora a fazer campanha pelo socialismo, a paz e a justiça e tenho a certeza de que iremos fazê-lo juntos."