Kavanaugh entre mulheres: as acusadoras, as senadoras e a interrogadora
Há três mulheres que o acusam de abuso sexual, quatro na comissão que tem o seu futuro como juiz do Supremo Tribunal dos EUA nas mãos e será uma mulher que o irá interrogar, assim como confrontar aquela que foi a sua primeira acusadora. Mas apesar de parecer que são as mulheres que têm o futuro de Brett Kavanaugh nas mãos, a decisão final caberá a um Senado em que elas são só 23 em cem senadores.
O candidato de Donald Trump ao cargo de juiz do Supremo Tribunal vai enfrentar hoje as acusações na Comissão Judicial do Senado, que ouve uma das suas acusadoras: Christine Blasey Ford. Mas já são três as mulheres que o acusam. Ele nega todas as acusações e o próprio Trump saiu em sua defesa.
Hoje, Kavanaugh deverá admitir (segundo um testemunho escrito entregue nesta quarta-feira à comissão judicial) que "não era perfeito" na escola secundária, dizendo que por vezes bebia demasiada cerveja com os amigos - "eu disse e fiz coisas no secundário que agora me deixam embaraçado" -, mas negará veementemente as acusações. Segundo o juiz, estas são, "pura e simplesmente", tentativas de última hora de manchar a sua reputação.
Numa entrevista à Fox News, na segunda-feira, Kavanaugh negou alguma vez ter agredido sexualmente alguém e foi mais longe dizendo que era virgem. "Nunca tive relações sexuais ou algo parecido a relações sexuais no secundário e durante muitos anos depois", afirmou, levando os críticos a lembrar que podia fazer aquilo de que é acusado sem perder a virgindade.
Já Trump escreveu no Twitter que os democratas estão fazer um jogo sujo num "esforço perverso" para destruir uma "excelente pessoa". O presidente norte-americano fala numa "política de destruição", dizendo que nos bastidores os democratas estão a rir-se. "Rezem pelo Brett Kavanaugh e pela sua família", acrescentou.
A comissão deverá votar sobre que parecer dar em relação à confirmação de Kavanaugh logo na sexta-feira, seguindo-se depois, numa data a confirmar, a votação no Senado: onde os republicanos têm uma frágil maioria de 51 para 49. Trump e os republicanos quiseram que este processo fosse acelerado, para garantir que acontece antes das eleições intercalares de 5 de novembro, onde os republicanos arriscam perder a maioria.
A professora de Psicologia da Universidade de Palo Alto (Califórnia) foi a primeira a denunciar Kavanaugh, numa carta que enviou a uma senadora (pedindo para ficar no anonimato) e mais tarde, dando a cara, num artigo no The Washington Post . Será o seu testemunho que os senadores da comissão judicial vão ouvir nesta quinta-feira. Isto depois de ter feito tudo para tentar manter o anonimato.
Ford, de 51 anos, vai contar como Kavanaugh alegadamente a empurrou para um quarto no primeiro andar de uma casa em Montgomery County durante uma festa, em 1982, quando ambos estavam no secundário (em escolas privadas diferentes). Segundo Ford, o agora juiz - que estava "trôpego de bêbado" - empurrou-a para a cama, apalpou-a e tentou retirar-lhe a roupa. Quanto ela tentou gritar, ele tapou-lhe a boca com a mão.
"Pensei que poderia sem querer matar-me. Estava a tentar atacar-me e retirar-me a roupa", disse ao The Washington Post, contando que escapou porque um amigo de Kavanaugh - Mark Judge, que estava no quarto a rir - saltou para cima deles, atirando todos para o chão.
Ford apresentou quatro testemunhos que corroboram a sua denúncia, de pessoas a quem contou a história só a partir de 2012 - revelando o nome de Kavanaugh, ainda antes de este ser nomeado por Trump para o Supremo Tribunal. O caso surgiu, por exemplo, durante terapia de casal que fez com o marido, Russell Ford, naquele ano - já lhe tinha contado, no início da relação, que tinha sido vítima de abuso.
O The Washington Post teve acesso às notas da terapeuta, que não menciona o nome do atacante, mas refere que ele era um "membro muito respeitado da sociedade em Washington". O marido diz que ela referiu o nome e temia que Kavanaugh, então um juiz federal, pudesse um dia ser nomeado para o Supremo.
Para os republicanos que defendem Kavanaugh, a história é vaga e não ajuda o facto de Ford ser democrata e ter contratado uma advogada e ativista democrata para a ajudar, questionando a veracidade das acusações. Ford já recebeu ameaças de morte.
A segunda acusação a vir a público, num artigo na revista The New Yorker do passado domingo , foi a de Deborah Ramírez, que estudou Sociologia e Psicologia na Universidade de Yale ao mesmo tempo que Kavanaugh estudava Direito. O incidente terá ocorrido quando ele era caloiro, no ano letivo de 1983-1984.
Ramírez, de 53 anos, mostrou-se inicialmente relutante em falar - indicando que havia falhas na sua memória e que tinha bebido na altura do incidente. Mas depois confirmou que se lembrava de Kavanaugh, durante uma festa no dormitório, ter exposto e encostado o pénis no rosto dela, obrigando-a a tocar nele sem consentimento quando o empurrou.
À revista, diz que ficou abalada com o caso, já que tinha sido educada como católica. "Não ia tocar num pénis até estar casada", afirmou. "Estava embaraçada, envergonhada e humilhada", referiu, dizendo que estava embriagada na altura do incidente. Disse lembrar-se de ver Kavanaugh, que tinha então 18 anos, a puxar para cima as calças e de alguém ter gritado o que ele tinha feito, usando o nome dele.
Ramírez, que entretanto pediu para o FBI investigar o caso, mostrou-se disponível para testemunhar também perante a Comissão Judicial do Senado.
Numa declaração de honra tornada ontem pública pelo seu advogado, Julie Swetnick acusa Kavanaugh de ter pertencido a um grupo de rapazes que tentavam embriagar ou drogar raparigas para abusar delas. E diz ter sido ela própria vítima de uma violação coletiva, numa festa em que o atual candidato ao Supremo Tribunal estava "presente", por volta de 1982.
Swetnick diz que participou em cerca de uma dezena de festas na região de Washington entre 1981 e 1982 onde estava também Kavanaugh e um dos amigos, Mark Judge (já referido por Ford e que publicou um livro sobre os seus problemas de alcoolismo na adolescência e na juventude). "Por várias vezes, nessas festas, vi Mark Judge e Brett Kavanaugh a beber de maneira excessiva e a ter um comportamento totalmente inapropriado, nomeadamente tornando-se agressivos com as raparigas", acusando-os de "acariciar e apalpá-las sem consentimento".
"Tenho memória dos rapazes alinhados no lado de fora dos quartos nessa noite, à espera da sua vez com a rapariga no interior", referiu, alegando que eles procuravam que elas ficassem bêbedas para as poderem violar. E admitiu que foi vítima de uma dessas violações coletivas em 1982, numa festa em que tanto Kavanaugh como Judge estavam. A declaração foi entregue à comissão.
A Comissão Judicial do Senado tem 21 membros, 11 deles republicanos e só quatro mulheres (todas democratas): a californiana Dianne Feinstein (líder da minoria na comissão, por ser a que está lá há mais tempo), Amy Klobuchar (Minnesota), Mazie Hirono (Havai) e Kamala Harris (Califórnia).
Foi a Dianne Feinstein que Ford enviou uma carta a denunciar os abusos que alegadamente sofreu da parte de Kavanaugh, pedindo-lhe para ficar no anonimato - algo que esta cumpriu, tendo, contudo, passado a informação ao FBI.
Mas quem se tem destacado entre as quatro é Mazie Hirono, de 70 anos, que está no primeiro mandato mas todos acreditam conseguirá a reeleição em novembro. Apesar de até agora não ter uma presença a nível nacional, é conhecida em Washington pelos comentários fortes. Não só apelidou Trump de "misógino", "predador sexual" e "mentiroso" num vídeo na CNN, como exortou os homens a "calar a boca e passarem à ação" após as denúncias contra o juiz.
"Eu acredito nela", indicou sobre Ford numa entrevista ao The New York Times , com a The New Yorker a apelidá-la de "âncora moral" das audiências a Kavanaugh (alterando depois o título do artigo).
A senadora, que nasceu no Japão (é a única imigrante no Senado, vivendo desde os 4 anos no Havai, terra natal da mãe, que era filha de japoneses), é defensora do movimento #MeeToo, que surgiu há menos de um ano após o caso do produtor de Hollywood Harvey Weinstein. Hirono defende que este não pode ser esquecido e que é por isso que, desde janeiro, tem feito sempre duas perguntas a todos os nomeados para juiz federal que passaram pela comissão, sobre se alguma vez, enquanto adultos, estiveram envolvidos em agressões sexuais ou se pediram favores sexuais.
Antes de começarem a vir a público as denúncias contra Kavanaugh, ela fez-lhe precisamente essas perguntas, na primeira parte da sua audiência de confirmação: "Desde que é adulto, alguma vez fez pedidos indesejados de favores sexuais ou cometeu assédio verbal ou físico ou agressão de natureza sexual?" e "Você já alguma vez entrou em qualquer acordo relacionado com este tipo de conduta?" O juiz respondeu, sob juramento, que não a ambas as perguntas - se, por acaso, se vierem a comprovar as acusações de Ramírez, terá cometido perjúrio na primeira.
Na entrevista ao The New York Times, disse que irá perguntar a Kavanaugh sobre o seu comportamento durante a escola secundária, lembrando que a audiência não é um procedimento criminal, mas uma entrevista de emprego, para alguém que terá um emprego para a vida e o poder de tomar decisões que vão ter um impacto na vida das pessoas durante décadas.
Em 1991, Anita Hill também denunciou outro candidato nomeado por um republicano (George H. W. Bush) para o Supremo Tribunal por assédio sexual no local de trabalho (quando trabalhou para o Departamento de Educação) e testemunhou diante da Comissão Judicial do Senado (todos homens, três dos quais ainda estão na comissão atual). Hill já disse que a audiência "não pode ser justa".
Clarence Thomas, o homem que acusou em 1991, é um dos atuais juízes do Supremo, tendo sido confirmado com 52 votos contra 48.
No dia em que foi testemunhar, Hill (professora de Direito) foi recebida com protestos, com os manifestantes a acusá-la de mentir. Thomas, nas suas declarações iniciais, negou todas as acusações, dizendo sob juramento que não conseguia imaginar que alguma coisa que tivesse dito a Hill pudesse alguma vez ser confundida com abuso sexual.
Quando foi chamada a testemunhar, Hill relatou uma série de episódios em que Thomas a convidou para encontros, se gabou das suas proezas sexuais e, apesar do seu desconforto óbvio e de ter dito que não queria que ele continuasse a falar desses temas, lhe falou sobre filmes pornográficos nos quais as mulheres se envolviam em atos sexuais com animais. "Senti que implícita na discussão sobre atos sexuais estava a oferta para ter sexo com ele", disse, segundo o artigo original publicado então pela agência Associated Press.
Questionado sobre porque é que não tinha denunciado o caso na altura (tinha acontecido há uma década), Hill disse que temia pela sua carreira caso o tivesse feito.
Na altura, outras mulheres vieram a público falar do comportamento pouco profissional de Thomas (que ele lhes tinha perguntado o tamanho do soutienou aparecido no seu apartamento sem ser convidado), que não consideraram não assédio sexual mas simplesmente um comportamento desagradável.
Thomas foi depois chamado a falar e rejeitou as acusações, dizendo que não iria continuar a ser humilhado pelo comité nem iria tornar pública a sua vida privada. "Não vou dar a corda para o meu próprio linchamento ou para mais humilhações", afirmou. "Confirmem-me se quiserem. Não me confirmem se acharem que é melhor. Mas deixem este processo acabar."
Quatro dias depois, e tendo o comité optado por não recomendar nem um voto a favor nem um voto contra Thomas, este foi confirmado no Senado. E tomaria posse a 23 de outubro de 1991.
A audiência em que Hill testemunhou foi transmitida em direito pela televisão e seguida com grande interesse, havendo quem alegue que este levou a que, no ano seguinte, muitas mulheres liberais tivessem sido eleitas para o Congresso - na altura, nem havia uma casa de banho feminina próxima do Senado. 1992 ficou conhecido como "ano da mulher", quando seis foram eleitas para o Senado. Entre elas, Dianne Feinstein, agora uma das mulheres no comité. Outras 24 foram eleitas para a Câmara dos Representantes e, hoje, há 23 no Senado norte-americano (em cem) e 107 entre os 535 membros da câmara.
Em 1991, o interrogatório a Anita Hill foi considerado agressivo e, para não repetir o erro, os republicanos no comité (todos homens) decidiram que não farão questões diretamente a Ford, sendo esta interrogada pela procuradora Rachel Mitchell, do Arizona, especialista em crimes sexuais. Será também ela a interrogar Kavanaugh.
"Contratámos uma mulher para fazer as perguntas de forma respeitosa e profissional", disse o líder da maioria do Senado, Mitch McConnell. A procuradora está atualmente de licença do cargo de responsável pela Divisão Especial de Vítimas, que processa crimes de violência sexual e doméstica.
Numa entrevista de 2012, Mitchell disse que as jovens vítimas muitas vezes não denunciam o que lhes aconteceu (o que vai contra aquilo que o próprio Trump alegou, de que se o ataque tivesse sido assim tão mau, então Ford teria apresentado queixa de imediato). "As pessoas acham que as crianças diriam logo e que diriam tudo o que lhes aconteceu. Na realidade, as crianças mantêm muitas vezes o segredo durante anos", afirmou.