Juan Gabriel Vásquez acaba de lançar em Portugal mais um livro, desta vez o seu primeiro romance, Os Informadores, de 2004. Confessa que na verdade é o terceiro, mas apagou da sua bibliografia os dois primeiros por considerar que não estão à altura do que pretende escrever. Desta vez, conta a história de uma família que fugiu para a Colômbia por causa da II Guerra Mundial e com ela pretendeu recuperar a memória coletiva que estava esquecida sobre o confinamento de alemães e judeus em campos de concentração na década de 1940 na Colômbia..Para o autor, o romance é a melhor forma de contar a história não muito distante do que aconteceu no seu país: "O que todos os meus romances pretendem é examinar o impacto daquilo a que chamamos história e política na vida privada. O território da minha ficção é o de encontrar o lado privado dos acontecimentos públicos, designadamente a nível pessoal e familiar. Foi o que fiz nos anteriores, já publicados em Portugal: explorar como essas realidades nos entram em casa e como os pequenos conflitos de uma família podem refletir os grandes conflitos de uma sociedade.".Em Os Informadores, Vásquez começa por colocar os leitores perante a crítica destrutiva de um pai sobre o primeiro romance do filho. Por que razão cria este choque é a grande questão do início deste livro: "Porque o centro do romance está todo nesse incidente. Primeiro, o conflito entre pai e filho é para mim uma metáfora do conflito histórico. Duas gerações que se confrontam, com a do filho a contestar o mundo que recebeu e a do pai a criticar o que fizeram com o seu mundo.".Explica que este romance "trata principalmente da nossa relação com a memória", daí esse conflito entre pai e filho ser muito importante. No entanto, há uma segunda razão: "A distância que existe entre a palavra escrita por um jornalista e a palavra falada por um professor de Retórica, que são duas maneiras muito diferentes de ver o mundo. Quando aquele que sempre utilizou a palavra falada escreve pela única vez de modo a causar danos ao filho, é um prenúncio do que irá acontecer no livro." Pergunta-se-lhe se o próprio pai fez algo parecido no seu primeiro livro, mas Vásquez, sorrindo, nega: "Não, temos uma boa relação e o meu pai gosta dos meus livros.".O pai do protagonista não queria que se revelasse o que aconteceu nos anos 1940. Quando o livro foi publicado, os colombianos souberam dos factos pela primeira vez? Foi uma revelação, mesmo que não seja essa a virtude do livro, apenas uma consequência da amnésia colombiana. Tudo isto era conhecido nos tempos a seguir a esses acontecimentos e até saiu nos anos 1950 um livro sobre os alemães que fugiram para a Colômbia. Mas todos esqueceram essa situação e foi este romance que veio recuperar essa memória..Conseguiu testemunhos diretos ainda?.Uma das coisas que descobri é o quão difícil era obter testemunhos desse tempo. Este romance resulta de uma conversa com a personagem Sara Guterman, na verdade Ruth de Frank, que falou comigo durante três dias seguidos. A partir desse momento, tentei falar com mais testemunhas mas ninguém aceitou. Eram recordações que incomodavam, às vezes muito dolorosas, de pessoas que tinham perdido todo o seu património porque um membro da família era simpatizante ou propagandista do nazismo. Ninguém queria revelar o que lhe tinha acontecido..Vivia em Espanha quando escreveu Os Informadores. Teve a ideia para o romance por estar num país ainda dividido pela Guerra Civil? Não, mesmo que quando foi lançado em Espanha alguns escritores, como Javier Cercas, estivessem a examinar o passado de uma maneira semelhante. Lembro-me de quando estava a promover o livro em Espanha ter dito que estava surpreendido por nenhum escritor espanhol ter escrito um romance sobre o golpe de Estado de 23 de fevereiro e logo me disseram que era o que Cercas estava a escrever. Ele leu a entrevista e ficou com medo de que lhe roubassem a ideia..Quando falou com Sara Guterman (Ruth de Frank) confiou no que ela relatou? A memória dela era extraordinária e com uma grande precisão nos pormenores, daí que uma grande parte do romance em que se conta a vida dela fosse tirada diretamente das minhas anotações nos três dias em que falámos. A seguir, escrevi o livro entre 1999 e 2002, e publicou-se em 2004, período durante o qual nunca mais conversámos. Quando voltei a vê-la, contou-me que o romance tivera um efeito muito importante na sua vida porque sempre desejara dizer essas coisas aos filhos e aos netos mas que eles nunca tinham demonstrado interesse. Diziam "somos colombianos, essa tua vida anterior não nos interessa", no entanto, após lerem o romance, começaram a fazer perguntas: "Isto é verdade? Isto é falso?", e pediram-lhe que contasse a sua vida. Eu não tinha previsto essa consequência importante, de despertar a curiosidade sobre o passado dela e de outros pais e avós..Os leitores também tiveram curiosidade sobre esse tema? Sim, o romance fez parte das conversas dos filhos de estrangeiros que vivem na Colômbia desde então e até houve muita gente que veio oferecer-me documentos sobre os seus antepassados. Se até então tinha tido muita dificuldade em obter informações para escrever o livro, depois de ser publicado não faltou material ou outros livros do género, porque muita gente veio oferecer os testemunhos e os documentos de que eu tinha precisado antes..A ideia que se tem é que os alemães que fugiram para a América Latina não tinham sido tão mal recebidos. Qual é a verdade? Não há uma única emigração alemã; entre eles existia os que fugiam do nazismo, também os que não eram judeus, alemães que tinham vindo anteriormente para fazer comércio e montar indústrias e, também, os que eram adeptos do nazismo. O que eu quis foi capturar um lado obscuro desses anos, mesmo que tenham existido situações felizes..Porque confinaram os alemães em hotéis? A Colômbia é um país que sempre teve uma influência grande dos Estados Unidos e sentiu-a de uma maneira muito forte. Os EUA tinham "solicitado" aos governos amigos que ajudaram no esforço da guerra para controlar os simpatizantes do nazismo e do fascismo, principalmente devido à proximidade do canal do Panamá, um lugar estratégico que os alemães queriam dominar durante o Terceiro Reich. A Colômbia era muito importante nesse caso e por isso o governo dos EUA pediu para fazer esses campos de prisioneiros para os inimigos dos aliados e o governo obedeceu a Roosevelt, sem pensar que estas regras e estes confinamentos jamais acabam bem. Muitos prisioneiros eram inocentes e suspeitos só por serem alemães, ou seja, existiam muitas zonas cinzentas nessa realidade e esse é o território deste romance..Este romance usa a estrutura do thriller do policial. Concorda? É muito importante que os narradores tenham a mesma relação que eu tenho com o material, ou seja, de investigador. Investigo um episódio obscuro da história colombiana e quero que os narradores também pesquisem esse passado misterioso. Uma das grandes qualidades da ficção é poder investigar, e os meus romances investigam as vidas secretas dos outros. Por isso, essa estrutura é habitual nos meus livros, técnicas emprestadas desses géneros que me ajudam..Esta é uma história de alguma violência, nada que seja estranho à Colômbia. Como conseguem os colombianos viver com essa situação constante? Isso também me pergunto eu... Todos os meus romances são de algum modo uma resposta a essa questão da violência colombiana eterna. Esse traço da história do meu país e da capacidade que tem de reinventar a violência desde as guerras civis do século XIX à política dos anos 1940, do aparecimento das guerrilhas, dos militares e do narcotráfico, que sempre estiveram presentes. É um círculo que se reinventa e reproduz e as sociedades que estão neste género de conflitos sabem que é a literatura que tenta responder a perguntas que não têm outra resposta..Os seus colegas também escolhem este tema? Nem todos, há uma tradição no romance colombiano que está obcecada com a violência como tema de romance. O primeiro grande livro do século XX, A Voragem, já tratava disso. Depois, segue-se Cem Anos de Solidão, de García Márquez, entre outros. Há uma tradição, ainda que paralelamente existam outras literaturas que nada têm que ver com a violência e são muito importantes também. Há quem não toque no tema da violência, mas creio que as sociedades produzem romances sobre as questões que as preocupam, e para a Colômbia a grande pergunta é: porque continua a violência?.A violência não terá fim? Os acordos de paz de 2016 foram para mim um dos grandes logros que aconteceram na nossa história recente, porque deveriam terminar com uma guerra de meio século, 300 mil mortos e sete milhões de vítimas. Desarmou-se a guerrilha mais antiga do continente, no entanto o governo tem sido negligente na execução dos acordos e a guerra não parou por completo, até continuam os assassínios..Há escritores assassinados? Ninguém lê romances. A vida dos jornalistas é que corre perigo, tal como os escritores que fazem jornalismo, mas a literatura de ficção tem um impacto muito reduzido na nossa sociedade..Essa situação de conflito instalou-se também no Brasil e na Venezuela. A América Latina estará sempre em crise? A América Latina tem historicamente essa característica terrível de não deixar que as democracias progridam através do caudilhismo e da necessidade de encontrar líderes extremistas que prometem a salvação do país. Essa realidade continua a encontrar um terreno muito fértil nos populismos; agora temos o populismo de esquerda, como o chavismo venezuelano, e de direita, como no Brasil de Bolsonaro. A América Latina navega entre esses dois extremos e ainda não descobrimos a virtudes das negociações diárias e de encontrar um caminho no meio..Pode-se dizer que tem um plano de fazer uma história contemporânea da Colômbia com a sua obra? Não é um plano consciente, mas na verdade sempre me interessou o passado e a forma como continua a ser uma espécie de fantasma ao moldar as nossas vidas no presente. Os meus romances têm sempre origem numa experiência pessoal, como a desta mulher que conheci. É uma origem autobiográfica, mas escrevo-os porque são episódios da história do meu país sobre os quais nada sei e quero descobrir esses seus mistérios. Os romances nascem disso, talvez dentro de vinte anos o conjunto dos meus romances seja um inventário de perguntas sobre o passado colombiano..Os Informadores.Juan Gabriel Vásquez.Editora Alfaguara.304 páginas