Jovens portugueses ajudam OMS a combater desinformação
A cloroquina cura o coronavírus? As torres 5G são as responsáveis por este surto de covid-19? Injetar lixívia ajuda? E as máscaras - devemos ou não usá-las? Na dificuldade às respostas a estas perguntas estão plasmados muitos dos dilemas que o jornalismo enfrenta a lidar com notícias relacionadas com saúde. Os estudos científicos não seguem os calendários mediáticos e as dúvidas que os seus métodos levantam não se coadunam com as certezas que o jornalismo está determinado a transmitir.
Por outro lado, há cada vez mais informação, vinda de todos os lados, nem sempre os mais credíveis. É neste cenário que cresce uma das correntes maiores e mais negligenciadas correntes de desinformação, a da área da saúde. E foi no sentido de combatê-la que surgiu o estudo O Impacto das "Fake News" na saúde de Francisco Goiânia da Silva e João Marecos, dois jovens, um ligado à medicina e o outro ao direito, e que acaba de ser galardoado com o Prémio João Lobo Antunes de Bioética - do ministério da Saúde.
A ideia de dedicar um estudo candidato a um prémio em bioética às fake news surgiu, segundo Francisco Goiana da Silva, médico e gestor, para "desempoeirar o sentido do que é a bioética", como desejava o médico falecido em 2016. "Não é só a questão da vida - nascimentos, fertilizações e eutanásia". João Marecos advogado e co-autor da página "Os Truques da Imprensa Portuguesa" acrescenta que "nos últimos tempos, com esta epidemia, a questão da desinformação na Saúde tornou muito evidente a necessidade de discutirmos soluções".
O estudo contou ainda com a colaboração de Oliver Bartlett, professor na área da ética na Universidade de Maynoth, Irlanda. Do júri do prémio, presidido por Maria de Belém Roseira, faziam parte Jorge Soares (Presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida), Paula Martinho da Silva, Fernando de Jesus Regateiro e Walter Friedrich Alfred Osswald.
Os números são elucidativos. Segundo este estudo, "as 100 principais histórias
de saúde publicadas em 2018 (incluindo partilhadas por meios de comunicação tradicionais) foram partilhadas um total de 24 milhões de vezes através das redes sociais, atingindo potencialmente biliões de leitores. Mais de 50% desses artigos foram consideradas imprecisas por um estudo recente realizado pela ONG Health Feedback. E se considerarmos apenas os 10 principais artigos, a taxa de imprecisão aumenta para 75%". Os temas dos artigos podem ser tão díspares como os efeitos do tabaco, álcool e canábis na saúde, "informações falsas sobre nutrição, dietas e obesidade e efeitos deturpados do exercício físico".
E há, ainda, antes do covid-19, mas provavelmente também depois, o "movimento antivacinação", como o "subproduto mais proeminente da desinformação em saúde". Segundo este estudo 14% dos brasileiros, por exemplo, acreditam que as vacinas são parcial ou totalmente inseguras e 31% acreditam que as vacinas são apenas parcialmente seguras. Ou seja, "no Brasil 45% da população revela receio em relação à vacinação".
A maior parte dos não corretamente informados, 48%, afirmava usar as redes sociais e o Whatsapp como as suas principais fontes de informação sobre o tema. Por outro lado, "a percentagem de pessoas que acreditam em informações imprecisas sobre vacinas seja mais alta entre aqueles que usam as redes sociais e o Whatsapp como fonte de informação (73% vs. 60%)".
E tudo isto aconteceu numa altura, como explica Francisco Goiana da Silva, em que "as pessoas têm acesso a muita informação, passámos da falta de acesso para o demasiado acesso." "Num mundo assim, a capacidade de selecionar fontes, filtrar versões, analisar criticamente a informação, tornou-se uma ferramenta tão básica como a capacidade de ler. Quando essa competência não está presente, a desinformação aumenta", diz o estudo.
Ou seja, é preciso "equipar as pessoas para saberem distinguir o que é fiável ou não". Nesse sentido este estudo é pragmático e aponta três linhas de atuação: ao nível da regulação do estado, da própria indústria dos media, e na sociedade civil.
Este sentido de "dever público" começa, obviamente, no Estado. E num campo em que se colocam a liberdade de imprensa e de expressão, a regulação é difícil, como explica João Marecos. "É difícil, nomeadamente, demonstrar o dano causado por uma notícia falsa. Mas não é por isso que não devemos regular".
Sem mostrar o caminho, o estudo lança o debate, estruturando a resposta que anda um pouco perdida, também ela, entre tanta informação. "A saúde é uma área como outra qualquer? Não será uma das áreas em que alguém não pode ter uma opinião não baseada em evidência?", questiona Francisco Goiana. Para os dois especialistas, a solução passará por haver uma entidade ligada à saúde que emita diretrizes sobre como cada país deve ou pode lidar com o fenómeno.
As linhas mestras do estudo agora premiado já foram aceites pela Organização Mundial de Saúde como sendo estratégicas - Goiana e Marecos vão agora trabalhar com o grupo de peritos internacionais que discutirão o assunto nos próximos meses para desenvolver uma estratégia de combate à desinformação na área da Saúde.
Esta é uma abordagem "pragmática": "o objetivo não é limitar a informação sobre saúde a especialistas, ou promover cegamente o status quo científico como a única verdade, mas onerar aqueles que lucram com a desinformação em saúde com algumas das consequências do seu conteúdo; forçar os "intermediários fiáveis", como os órgãos de comunicação social, a seguir certos procedimentos quando reportam sobre descobertas científicas; e, numa medida mais profunda, iniciar amplas reformas educacionais para fornecer às pessoas, nas diferentes etapas das suas vidas, as ferramentas hoje necessárias para navegar através de múltiplas fontes de informação num mundo cada vez mais desafiante."
Este primeiro nível de regulação, sugere Goiana, tem de ser acompanhado por um segundo, da própria indústria, ou, melhor dizendo, entre a área da saúde e os media. "Da parte da indústria (comunicação social e não só), o foco deve estar no desenvolvimento de boas práticas que possam tornar-se market-standard na transmissão de informações de saúde."
Da parte da Saúde, uma espécie de co-regulação poderia colocar as autoridades num papel mais interventivo, nomeadamente no que diz respeito às plataformas, onde a regulação das informações falsas da política já estão a ser controladas.
Os autores sugerem ainda que o âmbito comunicacional seja alargado a outros atores não tradicionais - não só os meios de comunicação tradicionais mas também a bloggers e influenciadores, como indicava um estudo recente do Reuters Institute da Oxford University, que colocava as celebridades da música e do cinema entre os que mais espalharam o boato da relação entre o coronavírus e as antenas de 5G.
E, para finalizar, "seria hipócrita não falarmos em habilitar a população com ferramentas que lhes permitam distinguir o que é desinformação", remata Marecos. "As pessoas têm de ter os sinais da credibilidade da informação, ou não. Têm de perceber que não é credível o que o vizinho lhes conta ou aparece no whatsapp. Parece fácil, mas são novos hábitos, e precisam de novas ferramentas, e não estamos treinados para lidar com eles."