O sol queima à medida que descemos o vale da Quinta do Lavrado na zona Oriental de Lisboa. A tarde era a de um dia do mês de agosto marcada pelo aumento do número de casos de infeção por covid-19. Por entre o mato seco, o som de algo a rastejar faz-nos perceber que há mais alguém que nos acompanha nesta viagem..Inês e Madalena, a enfermeira e a assistente social que compõem a equipa de rua da Crescer, apanham do chão as seringas largadas e colocam-nas no recipiente anticortante. É o primeiro trabalho que fazem assim que saem da carrinha com as mochilas de material às costas. "É uma forma de não as voltarem a usar e assim reduzir-se o risco de contágio de doenças infecciosas, como a hepatite C e o VIH", explicam..O vale perde-se de vista das Olaias até Xabregas, mas está escondido da civilização, pelos bairros modernos e antigos que o circundam e onde a vivência se faz de costas voltadas para o problema ou dentro do problema. Hoje é uma das salas de chuto a céu aberto que proliferam na cidade de Lisboa, e igual a tantas outras que existiam nas décadas dos anos 1980 e 1990, e que se pensava já não existirem..Afinal, existem. E a tendência é para agravar, se nada mudar, porque, dizem-nos, dia a dia, semana a semana ou mês a mês, as barracas de consumidores vão aumentando. Inês e Madalena explicam: "Muitos já nem saem daqui. Ficam 24 horas sobre 24 horas para consumir. E acabam por dormir, a comer o que lhes trazem e até a conseguir aqui o que lhes mantém o consumo.".A primeira paragem acontece junto à barraca do Zé, erguida com despojos de outras vidas, que vão da América Latina a Nova Iorque. Inês e Madalena anunciam várias vezes, alto e bom som: "Olá é a Crescer, está alguém?" A resposta surge apenas de uma sombra, onde Filipe Morais está deitado, o gato de olho verde, que Zé ali deixou. "Não vemos o Zé desde que a pandemia começou", dizem, mas sabem que está a fazer o que gosta. "A filha ajudou-o a criar uma página no Facebook e está a restaurar móveis. Tem tido muito trabalho.".Zé, que é homem para mais de 60 anos, deixou que a sua oficina de carpintaria se transformasse há muito em sala de consumo, de um lado para quem se injeta, do outro para quem fuma e "não o quer fazer a céu aberto". Porque não são só os que vivem na rua que ali vão. Às vezes, a pressão do consumo não dá sequer para sair dali e ir até casa..Redução de riscos é o objetivo.Mas naquela tarde tórrida não estava ninguém, nem Zé nem outros. Inês e Madalena deixam, de qualquer forma, kits de consumo, não vá alguém precisar, e porque a missão delas é mesmo essa. "Prevenir os riscos", sobretudo os que implicam doenças infecciosas, como a hepatite C, que atinge mais de 97% da população que se injeta, ou o VIH.."Se prevenirmos estas doenças, a sociedade fica a ganhar", intervém o professor de Medicina e diretor de serviço de gastroenterologia do Hospital de Santa Maria, Rui Tato Marinho. "Está estudado que por cada euro investido na prevenção e em tratamentos a sociedade recebe de volta 3,75 euros. É muito positivo.".Por isso, Inês e Madalena todos os dias carregam as mochilas com material de consumo, desde seringas, boquilhas, papel de alumínio, preservativos, lubrificantes, toalhitas, luvas e até com os kits de rastreio rápido à hepatite C e ao VIH. "Quando algum aceita fazer o rastreio é uma pequena conquista, depois se aceitam o tratamento é outra é assim que se vamos sentindo que o nosso trabalho é útil", argumentam Inês e Madalena..São estas conquistas, mesmo que pequenas, que as fazem sair todas tardes da sede da Crescer, na Quinta do Cabrinha, em Alcântara, e andar por Lisboa, entre a Picheleira e as Olaias e o Intendente e o Regueirão dos Anjos, entre as 14.00 e as 18.00, às vezes mais, porque "a empatia compensa. É um trabalho do coração, o fazer algo por estas pessoas, que já são tão marginalizadas pela sociedade"..Jotas, o sobrevivente.Metros abaixo da barraca do Zé há outra barraca. Esta pertence a Jotas, vamos chamar-lhe assim. "Olá. É a Crescer. Estamos a chegar com mais pessoas", o aviso é repetido várias vezes. Jotas é "um sobrevivente", dizem, "já conquistou aqui uma posição social. Vive no vale há uns seis ou sete anos e não sai. Já tentámos que fizesse metadona e que fosse comer aos refeitórios, mas não vai. Saiu duas vezes para ir buscar a metadona às carrinhas, destruíram-lhe a barraca, abandonou o programa e não sai. Dorme aqui e come o que lhe dão", explicam as técnicas. Jotas já está na posição de "ajudar quem não tem material para se injetar e recebe dinheiro por isso". É assim que sustenta a dependência..Assim que chegamos, Jotas é perentório: não quer ser visto por gente de fora, que não a habitual. "Parece estar maldisposto", dizem-nos. "Ia consumir.".Pede água e dão-lhe. Inês e Madalena conhecem a história dos 45 anos deste homem que já leva mais de 30 de consumo. Sabem que cresceu no Intendente, que foi posto fora de casa pela mãe quando ainda tinha 13 ou 14 anos, que conheceu o mundo da prisão por roubo para a droga, e que até tem um amigo de infância, hoje advogado, que o ajuda a tratar de algumas coisas da sociedade civilizada..Porque o mais importante neste trabalho "é saber aceitar as pessoas como são, não as julgar ou tentar mudar". Até porque isso poderia colocar em causa a empatia que procuram e a confiança que já conseguiram. E são estas que um dia trazem surpresas. O médico de Santa Maria e professor na Faculdade de Medicina concorda: "É não ser punitivo ou marginalizá-los, e um dia poderemos ter resultados.".Por isso, continua a ir ao terreno e a dar o seu contacto a quem lhe pede ajuda. "Dou sempre o meu contacto, nunca tive problemas. O vir para o terreno é uma experiência de vida brutal, uma riqueza enorme." Acrescentando: "Um médico tem de ter conhecimento científico, técnico, mas também tem de ter a vivência de ir à rua e de perceber como isso pode ser benéfico em termos de cuidados de saúde. Aprende-se sempre.".O objetivo de Rui Tato Marinho é conseguir reforçar a parceria entre o seu serviço e a Crescer, mas sabendo que tem de motivar mais os profissionais do hospital a acompanhar as equipas da associação. "Agora ainda somos poucos. Estou eu, outra médica e alguns enfermeiros, mas todos em regime de voluntariado, se tivéssemos mais alguns colegas connosco conseguiríamos muito mais.".A parceria entre as duas entidades a nível de referenciação de doentes para consultas e tratamentos já existe há algum tempo, o objetivo agora é reforçar este trabalho com os rastreios rápidos, mas o professor de Medicina acredita que um dia possa levar "os cuidados de saúde à rua e a quem precisa deles". Porque, reforça, "o país só tem a ganhar com isso". "Uma pessoa que se trate à hepatite C, por exemplo, sente-se logo melhor fisicamente e pode até avançar com um processo de recuperação das dependências", defende. Por outro lado, está provado que este processo traz mais pacificação social. "Quem está a tentar recuperar-se deixa a criminalidade. Já não tem necessidade de dinheiro para consumir"..Positivo à hepatite C, negativo ao VIH.Na barraca, Jotas consome. Inês e Madalena aguardam. Também tem de ser assim. "É um trabalho de muita paciência e resiliência", afirmam. Só quando ele termina é que regressam para lhe falar do rastreio rápido. Cá fora, Américo Nave, diretor executivo da Crescer, que também acompanha esta viagem por Lisboa, argumenta. "A mensagem tem de ser passada todos os dias, até que um dia alguém diz: 'Aceito.'".E aquele foi o dia de Jotas o dizer, reforçando a confiança nas técnicas. Aquele foi o dia em que mostrou que, afinal, ele ainda importa e o trabalho delas também. "Aceitou fazer o teste", dizem satisfeitas..Inês prepara o material, disse-lhe o que ia fazer e como, para que nada o deixasse desconfortável. Jotas já não parecia maldisposto e até deixou que o momento fosse fotografado. Até então, os pedaços de madeira que o albergam ainda não tinham deixado que lhe víssemos o rosto, mas aquele momento deixa perceber que ainda sorri e que no cabelo resistem rastas com missangas de outros tempos..Uma picada num dedo e em poucos minutos Inês estava a dizer-lhe que era positivo ao VHC (hepatite C) e negativo ao VIH, nada que ele já não imaginasse. A enfermeira brinca, dá-lhe força e chama Rui Tato Marinho: "Professor pode chegar aqui?".O médico, que há 32 anos trabalha a área das doenças infecciosas em Santa Maria, mais a hepatite C, explica-lhe o que se segue: "Agora, é uma questão de se colher sangue e levá-lo ao laboratório do hospital para sabermos se tem o vírus ativo ou não. Depois, é começar o tratamento. São 60 doses, um comprimido todos os dias, as técnicas trazem e toma à frente delas." Mas Jotas está cansado, pede para não tirar sangue naquele dia. "Não faz mal. Pode ser noutro", dizem, mas as técnicas acreditam que ele dará os passos seguintes..A recaída provocada pela pandemia.Cá fora Ricky toma a palavra para dizer a Américo Nave que "o trabalho destas senhoras é muito bom, se não fossem elas...". Américo pede mesmo que deem feedback da intervenção na rua, porque só assim "é que melhoramos o nosso trabalho", argumenta. Um trabalho que já começou em 2002, um ano depois de a associação ter sido fundada, em novembro de 2001, e que hoje já conta com várias equipas de rua e cerca de 50 colaboradores, dos quais 30% são pares - ou seja, alguém que já passou por aquele mundo, que fala a mesma linguagem e que sabe o que é aquele sentir.."Precisamos de boquilhas", diz Ricky aproveitando a deixa de Américo Nave, "Quem quer fumar não pode, só há seringas", diz, e são estas que trazem mais riscos, mas, ao mesmo tempo, acrescenta com certezas: "Estou a dizer isto mas hoje é o último dia em que me veem aqui. Recebi uns trocos e vim fazer a festa. Amanhã é outro dia. Estou cansado desta vida", confessa. "Quero sair. Estive tão bem durante uns anos e agora tive uma recaída há um mês", admite..Ricky também tem 45 anos. Consome desde 2009, já viveu no Reino Unido, passou por Espanha, Holanda e Alemanha. Diz falar fluentemente inglês, francês alemão e arranhar o espanhol e que nunca teve dificuldade em arranjar trabalho. Antes da pandemia trabalhava num grande hotel de Lisboa.."Estive a trabalhar até ao dia 27 de março, veio a pandemia e mandaram-me embora", diz, retomando o discurso do que faz falta: "Salas de chuto, nunca percebi porque não há em Portugal. Conheço algumas em Espanha e na Alemanha. Têm todas as condições. Não é como isto." Américo Nave diz já ter visitado em trabalho algumas salas daqueles países europeus e concorda não perceber porque nunca se avançou com uma medida que até consta da legislação portuguesa desde 2009..E as salas de chuto que não saem do papel.O dirigente da Crescer defende mesmo que de há dez anos para cá se assiste a um problema grave nesta área. "Parou-se no tempo. Deixou de se investir na criação de projetos que respondam às necessidades desta população, que é muito diferente da que havia há 20 anos, e os projetos são praticamente os mesmos." Não é que não sejam importantes, "mas hoje são precisas outras respostas, mais inovadoras e as estruturas com responsabilidades não têm respondido a esta necessidade"..Para Américo Nave são importantes projetos como o do rastreio às doenças infecciosas, logo na primeira linha da faixa onde a doença mais ataca - em Portugal estima-se que cerca de 97% da população que se injeta já foi atingida pelo vírus. Por isso, reforça,"as salas de consumo não avançam e fazem falta. Só aqui neste vale passámos por tantas salas de consumo a céu aberto, sem qualquer tipo de higiene, para os consumidores e para a comunidade envolvente. Há crianças na zona que se cruzam com este tipo de realidade, não é bom para ninguém"..Mas há mais. "O acesso aos tratamentos continua a ser muito moroso. As pessoas que querem entrar em tratamento esperam meses, algumas já têm morbilidades, estão envelhecidas, temos aqui pessoas de 45, 50 e 60 anos, que ainda procuram emprego, mas que não têm qualquer outra rede de base para recomeçar, senão o apoio que lhes damos. Precisam de habitação, por exemplo.".O caminho não pode ser o que está à vista. Tem de haver algo mais. "As pessoas precisam do mínimo de condições de estabilidade, de condições básicas de saúde para se conseguirem integrar. Eu costumo dizer que é preciso termos noção de que a linha para entrar numa situação de sem-abrigo é muito mais ténue do que pensamos." E não pensamos que a seguir a esta, muitas outras linhas se podem quebrar..Ricky volta à conversa, depois de ter estado a consumir no meio do mato seco, para dizer mais uma vez que o que quer é tratar-se. A pele está escura pelas drogas e pelo sol, os olhos encovados e a tapar as marcas da seringa uma T-shirt vermelha e calças de treino.."A minha mãe nem sabe que estou assim, continua a viver em Inglaterra, na semana passada tentei fazer a desintoxicação numa comunidade, mas era a frio e não consegui. Agora, já estou na metadona, comecei com 35 mg, mas o que quero mesmo é ir para um centro para me tratar. Estou farto desta vida", repete. Ricky diz que foi ao vale do Lavrado pela primeira vez. "Vim porque o meu amigo conhece o sítio, amanhã já não me veem." Parece sincero neste querer, e Américo diz que o vão tentar ajudar..Inês e Madalena conhecem-no de outras paragens, de outras saídas e recaías daquele mundo, mas para eles a verdade que conta é a do momento. E a dele é a de querer tratar-se da dependência. Assume que não faz o rastreio, que já teve hepatite C, que fez tratamento, "em Inglaterra. Agora, até queria saber se tenho outra vez ou não, porque ando com seringas, mas hoje não dá", diz a abanar a cabeça. "Hoje não. É o último dia." Um discurso que a equipa da Crescer conhece não só de Ricky, mas de outros também. No vale da Quinta do Lavrado todos têm uma história antes e até já durante a pandemia que encaixa a vida das drogas..O pior é experimentar.Eri, de 36 anos, acabadinho de chegar ao sítio de Jotas, tem grandes filosofias sobre o problema da droga e remata: "O pior é a pessoa experimentar, uma vez que experimentou, gostou. A droga não nos deixa sentir tristezas, medos, angústias...", explica. "Depois de experimentar, só não consome quem tiver estabilidade. Se não há, o pensamento puxa sempre para a droga. É forma de libertar o que se sente". Eri parece saber do que fala, diz que consome esporadicamente cocaína, "por isso, o meu aspeto é diferente. Tenho bom aspeto", afirma a rir..Não dá a cara, já trabalhou como segurança e conhece outros mundos da droga, aqueles em que "há gente com poder financeiro e que está agarrada, mas não admite. São aqueles que encomendam e recebem o produto em casa, e só percebem que têm um problema quando ficam sozinhos a consumir"..É a outra franja da população das dependências, mas estes "não são marginalizados, têm dinheiro, mantêm a aparência, escondem o que sentem e conseguem controlar a situação desta forma. E podem sempre pedir ajuda indo aos consultórios privados e não na rua", porque, o problema, insiste, "é para toda a vida"..Eri continua a tecer comentários sobre o mundo da droga, como deveriam ser as ajudas e os apoios, mas enaltece as equipas que ali vão. "São a única rede de apoio para muitas destas pessoas", ele está de fora. Depois de segurança, Eri tira a carta de condução de pesados quer ser motorista de autocarros de turismo de longo curso, porque: "Sou um relações-públicas.".Quem o vê não diz que possa ser um consumidor, o corpo musculado e os olhos verdes dão-lhe aparência mais jovem do que os 36 anos que diz ter. Quando duvidamos, mostra o cartão de cidadão que comprova a data de nascimento..O professor de Santa Maria pergunta-lhe: "Não quer dar a cara aqui, mas estaria disposto a ir fazer uma palestra para jovens alunos de Medicina na faculdade?" Ele ri-se e explica: "Vou, mas só se for uma partilha de experiências, de vivências, e não uma palestra, porque se for palestra era uma questão profissional e teria de cobrar dinheiro." E, dessa forma, "não o faria". Eri sabe do que fala, mas não revela o que ali está a fazer, diz que não tem hepatites porque também não se injeta..Covid confinou a droga, mas o vício não.A pandemia confinou a droga, mas o vício não. E a falta de produto fez que as ressacas aumentassem e se tornassem mais dolorosas. Uma realidade que, para quem faz parte da linha frente do plano municipal para a covid-19, como as equipas de rua da Crescer, "foi muito complicada. Nunca parámos", contam Inês e Madalena..Inês, como enfermeira, também teve de prestar cuidados de emergência. "Na mochila trago sempre material de enfermagem, há sempre alguma coisa mais a fazer, um penso, tratar cortes, mas nesta altura foi mais complicado", explica. Mas se o confinamento tirou as drogas da rua, o desconfinamento e o desemprego estão a trazer as recaídas. "Há mais gente na rua", garantem. Não há números, pelo menos, oficiais, sabe-se que o programa de metadona já integrou mais 300 pessoas. Ernesto, amigo de Ricky e de Jotas, é exemplo disso mesmo..A magreza marca-lhe o rosto de 62 anos e 28 de consumo, mas "se tiver trabalho aguento-me bem. Só tomo metadona, não tenho necessidade de consumir. Mas fiquei desempregado com a covid. E, em casa, a olhar para o teto é mais difícil de resistir", assume. Ernesto nunca tinha consumido até à idade adulta, "para ser preciso até ao momento em que me separei da minha mulher e do meu filho", depois comecei a dar-me com pessoas que já o faziam, experimentei e nunca mais parei. "Primeiro só consumia à noite, quando chegava a casa do trabalho. Aguentava-me bem e ninguém percebia, mas agora já não", admite..Não tem problema em dar a cara, é uma vida que assume e que larga quando tem estabilidade. "Assusta-me muito não saber o que me vai acontecer daqui para a frente", diz. Foi este pensamento que o fez cair mais uma vez. Também já está a tomar metadona, "quero encontrar trabalho". Ernesto tem roupa limpa e máscara na cara, já esteve infetado com hepatite C e foi tratado pelo médico que ali está à sua frente em Santa Maria, na altura também tinha sido referenciado pelas equipas de rua. "Doutor, já fui seu doente." "Estava a ver que o conhecia. E foi dos que fizeram o tratamento certinho, nunca falhou consultas." Ernesto encolhe os ombros e diz estar a precisar de nova consulta..O médico, como faz a qualquer outro doente, quer viva na rua, seja agente da PJ, músico ou jogador de futebol, dá-lhe o número de telemóvel para combinarem nova consulta. "Ligue e vá ter comigo para fazer exames e vemos o que há aí.".Ernesto agradece. Rui Tato Marinho explica que "os cuidados não podem ser iguais para todas as pessoas". O caso de Ernesto e Jotas mostram isso. "Não há um perfil de doente. O Ernesto foi ao hospital e cumpriu tudo, mas a maioria não vai. E temos de a tratar." Por isso, reforça: "Um dos objetivos deste projeto de rastreio é aproximarmo-nos da comunidade. Um médico consegue falar com toda a gente, o conseguir falar com um toxicodependente é um capital humano muito grande.".Rui Tato Marinho é diretor de serviço há dois anos, mas é também o presidente da Sociedade Portuguesa de Gastroenterologia, ao longo deste tempo tem desenvolvido projetos com outras associações que também têm intervenção comunitária, desde a rua até às prisões, porque acredita que "a saúde pode ser restaurativa. Tenho exemplos incríveis de mudanças de comportamentos e de vida", afirma. No entanto, este conceito de saúde restaurativa não é algo que esteja interiorizado na sociedade portuguesa. "É uma ideia minha. A saúde restaurativa é acreditar sempre que aquela pessoa pode melhorar os seus comportamentos. É trazer a pessoa para a sociedade, não só em termos físicos, mas também mentais e sociais.".Aida. Da Força Aérea ao vale do Lavrado.No vale do Lavrado, a tarde vai a meio, mais abaixo da barraca de Jotas, Aida não para de um lado para o outro, Assim que vê Inês e Madalena corre a ter com elas, refila por ainda não ter conseguido um apoio. "Liguei para lá e dizem que não consta o meu nome." Madalena explica-lhe: "Tu não entregaste a declaração. Tens de fazer tudo de novo", mas desabafa ser complicado, e já nesta fase, lidar com os serviços públicos, "parece que continua tudo parado. Não conseguimos sequer fazer marcação para renovar o cartão do cidadão. Isto faz que alguns fiquem sem apoios"..São elas que também levam quem vive na rua às consultas, por exemplo grávidas toxicodependentes, que lhes marcam as consultas, e que até os ajudam a tentar arranjar emprego. Aida diz ter um desejo: "Quero trabalhar na associação.".Madalena e Inês incentivam-na falar com o diretor. Aida vai. Américo pergunta-lhe o que quer fazer, ao que responde: "Qualquer coisa, quero trabalhar para sair desta vida", confessa. Américo diz-lhe que precisa ver o processo dela e avaliar o que poderá fazer e que depois a equipa falará com ela..Aida dá a cara ao DN para contar a sua história, a da mulher que tem 43 anos, mais de 20 de consumo e os últimos dez em força, "experimentei tudo". Aida diz ter três filhos, mas há tempos que não os vê. "Vou ficando por aqui, já não dá. Tinha vergonha de consumir ao pé deles", mas houve tempos em que teve outra vida.."Estive na Força Aérea e nunca consumi, mas houve uma altura em que precisei de dinheiro. E sabe como é. Isto é dinheiro fácil. Comecei a vender. Depois comecei a gostar de uma pessoa, fiquei obcecada por ele, é o pai dos meus filhos. Deixámo-nos, voltámo-nos a juntar, ele consumia e um dia experimentei para sentir o que ele sentia e nunca mais parei. Agora quero trabalhar para me tratar.".E regressa à conversa do trabalho: "Não fuja, diga lá. Arranja-me trabalho?" Américo diz, mais uma vez, que vão avaliar o processo e ver o que ela poderá fazer. A associação tem projetos, como o do restaurante, na Rua de São José, onde estão várias pessoas que se recuperaram a trabalhar. Portanto, Aida não seria a primeira a consegui-lo..A volta na Picheleira termina. Hoje, havia menos gente. "É verão e eles mudam muito de sítio. Às vezes, vão para as zonas de praia, onde arranjam trabalhos sazonais." A etapa seguinte era a nas Olaias, junto ao metro, mas "a esta hora já não há ninguém"..No Intendente há de tudo.A carrinha segue em direção ao Intendente. Aqui é preciso ter cuidado com os comportamentos, avisam. "Ninguém se injeta, só fumam e há muitos que têm alucinações e ficam violentos." A zona é conhecida de qualquer lisboeta, porque é aquela onde a droga, prostituição, residentes antigos e imigrantes convivem com o turismo e com a faceta mais trendy da capital. No Largo do Intendente, nas esplanadas, quem ali vai pela primeira vez é capaz de não dar pela realidade, que, dizem-nos, "está pior com a covid"..A Rua do Benformoso tem os mesmo habitués, mas naquela tarde menos, e alguém lhes diz: "A polícia esteve aí e fez detenções". Estava explicado. Por outro lado, "estão habituados a ver a carrinha pelas 16.00. Não viram e foram-se embora", mas ainda há quem se abeire para pedir preservativos ou papel de alumínio..A volta está a terminar. Inês e Madalena conhecem a zona já como a palma das mãos. Uma está na Crescer há um ano e meio, Madalena está desde janeiro deste ano, mas há sete que trabalhava nos programas de metadona. Nesta viagem esteve também Joana Almeida, que vai ficar a coordenar o projeto dos rastreios a partir de setembro. O objetivo é reforçar o projeto, porque é "pioneiro e inovador", diz Américo Nave..Para Rui Tato Marinho este projeto pode ajudar a mudar o mindset dos cuidados de saúde. Talvez assim alcancemos mais resultados"..O último relatório mundial sobre as drogas revela que, no mundo, a prevalência do vírus da hepatite C é a principal causa de morte por cirrose e carcinoma. No mundo continuam a morrer todos os anos mais de 700 mil pessoas por doença hepática. Em Portugal, estima-se que 150 mil pessoas já tenham tido contacto com o vírus.