A ideia deste filme focou-se, desde o princípio, sobre Harry Dean Stanton?.Mais do que um filme sobre ele, diria que é um filme inspirado por ele. O que aconteceu foi que os dois argumentistas [Logan Sparks e Drago Sumonja] tinham vontade de trabalhar com o Harry, porque o conheciam há muito tempo. Então surgiram com esta ideia de olhar para ele como uma espécie de guru no deserto. Tudo começou com essa premissa, e depois acrescentaram muita da sua filosofia. A grande dúvida era se o Harry poderia aceitar fazer o filme. E ele aceitou. Eu fui um casamento arranjado mais tarde..[youtube:2KLLkj84GAo].O que é que mais o preocupou durante a rodagem, em relação ao próprio Harry?.Para além do cansaço físico, eu queria certificar-me de que ele estava mental e emocionalmente apto para o trabalho, como era preciso que estivesse para entrar nesta viagem. Havia dias em que pensava - ao vê-lo naquelas longas caminhadas que fazia - se o título do filme não deveria ser “Lucky ou como torturar Harry Dean Stanton”….É curioso que tenha realizado um filme com esta dimensão de viagem espiritual, através de uma abordagem realista muito sustentada pelo ateísmo da personagem, Lucky….O que me agrada no ateísmo do filme é que ele aumenta os riscos para a personagem. O drama é sobre riscos, e eu não consigo pensar num momento mais dramático na vida de uma pessoa do que o escolhido: a iminência da morte. Lucky é muito mais velho do que qualquer pessoa à sua volta, não tem nenhum problema de saúde - apesar de fumar um maço de cigarros por dia - e, no entanto, pode simplesmente morrer da queda que deu na cozinha. Ele não aguarda ressurreição ou reencarnação, limita-se a enfrentar o vazio. E o que tenta fazer é encontrar uma maneira de viver os dias que lhe restam de uma qualquer forma que se pareça com vida, em vez de simplesmente esperar pela morte..E como surgiu David Lynch neste projeto? Ele que foi amigo e o fã número um de Harry Dean Stanton..O David foi ideia do Harry. Estávamos à procura de alguém para a personagem do Howard [um homem solitário a quem desaparece o cágado de estimação] e perguntámos-lhe quem poderia encaixar no papel. Ele só disse “que tal o David?” Todos achámos uma excelente ideia, mas não estávamos convencidos de que iríamos conseguir, porque ele estava a meio da pós-produção de Twin Peaks… Mas fizeram-lhe chegar o material, ele gostou e ajustámo-nos aos dias em que podia filmar. Veio tão magnificamente preparado, com a personagem de tal forma assumida naquela desarmante inocência, que a sua interpretação criou uma bela afinidade com a melodia que atravessa o filme… É que também Howard está a enfrentar pela primeira vez o facto de estar sozinho..Como é que o Harry lidava com os conteúdos biográficos do argumento?.Havia alturas em que o material era tão íntimo que ele ficava pouco confortável e não queria dizer certas coisas. Mas disse-as. Particularmente a história da cotovia que parou de cantar, o momento mais triste da sua infância, é verdadeira e ele já tinha contado algumas vezes… Mas é diferente quando estás a assinar alguma da tua biografia para uma personagem de ficção..É mais forte do que um documentário..Muito mais forte. Sabe, a intenção do argumento era criar um filme que se aguentasse por si, independentemente de o espectador conhecer ou não a biografia do Harry. E acho que conseguimos isso, que Lucky vivesse por si, como personagem. Foi muito gratificante para mim quando ele, já depois da rodagem, descreveu a personagem como alguém que o Logan [Sparks, argumentista] concebeu. Achei isso maravilhoso, porque o próprio dizia em muitas entrevistas que durante 40 anos não representou outro que não Harry Dean Stanton. Pensei muito nisto durante todo o processo: a pessoa que Harry criou não é ele, mas uma interessante revelação da sua essência… É como um vinagre balsâmico da sua vida, é muito mais concentrado..Lucky tem momentos singulares, como aquele em que Harry canta uma canção mexicana. Durante a rodagem houve outros momentos especiais?.Há um momento que me vem de imediato à memória. Era um dia muito quente. Filmámo-lo a andar seis ou sete quilómetros e depois ele sentou-se numa cadeira que estava no meio da rua. Fui ao pé dele e perguntei “quer que lhe traga alguma coisa?”, ele disse que não e acendeu um cigarro. Ficámos ali sentados cerca de 5 minutos em silêncio. Não dissemos nada um ao outro e foi simplesmente maravilhoso.