No ano passado os médicos convocaram uma greve. Há dois anos, duas. O que vos leva a continuar a aposta nas paralisações? A situação grave e insustentável que se passa no serviço público de saúde, com a carreira médica, com a gestão desorganizada, programada através da gestão empresarial e dos contratos individuais de trabalho que destroem completamente o espírito de equipa. Para trabalho igual, salário desigual. Os quadros foram fechados para que tudo estivesse ao serviço de um mercado de serviços privados. Até a lei que diz que se as pessoas ao fim de três meses não tiverem consultas ou cirurgias têm um cheque e vão onde querem. Isto é claramente tirar o dinheiro do Estado e dar aos privados..Mas os vales-cirurgias não são positivos para a redução do tempo de espera dos utentes? Não reduz nada, porque qualquer pessoa normal e literata não aceita ser operada por um cirurgião ortopedista ou vascular qualquer numa clínica qualquer para não ficar à espera seis meses. Isso acontece porque os quadros dos hospitais não foram preenchidos com o dinheiro que se gasta com as empresas de trabalho temporário, que custam neste momento 199 milhões. Dava para pôr mais dois ou três mil médicos no quadro por concurso, por mérito. Dava para formar as pessoas que estão neste momento numa situação indiferenciada, que servem para tudo e integram equipas que nunca se viram.Conhece hospitais onde as equipas de trabalho sejam constituídas exclusivamente por tarefeiros? O Algarve é sinónimo da desgraça nacional. As equipas de cirurgia, de ortopedia ou de ginecologia são constituídas por pessoas que nunca se viram, que se encontram no dia da urgência, sem ninguém do quadro. Acontece noutros hospitais, como por exemplo no Amadora-Sintra, onde não há anestesistas e não há obstetras, porque nunca se preocuparam com isso, convencidos de que o mercado ia resolver..A desorganização permitiu a destruição do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Isto é um problema que se arrasta desde há 15 ou 20 anos, ao longo de vários governos, e há nomes por trás disto: Luís Filipe Vieira, Correia de Campos e Francisco de Ramos. Isto é tudo decidido de uma forma inusitada, desorganizada e desmoralizante. Como é possível termos dois mil médicos que não conseguem entrar para os quadros? Fazem-no porque precisam deles para as empresas de trabalho temporário, que gastam muito mais dinheiro do que gastariam se estivessem todos a trabalhar para o serviço público. Com este tipo de trabalho impedem-se equipas pluridisciplinares que gostem de defender a sua causa. Os serviços estão todos autonomizados e têm diretores de serviço que promovem a promiscuidade entre o privado e o público..Como? Trabalham nos dois lados e enviam doentes de um lado para o outro. Os diretores de serviço têm de dar o exemplo de trabalhar no serviço público. Não podem trabalhar também no privado, como acontece ainda no Hospital de Loures. O diretor da PPP [parceria público-privada], ou seja, de um hospital com gestão pública, é também diretor de um privado. Fala-se muito no Serviço Nacional de Saúde, mas nunca se fez uma política concreta para resolver o problema. Não é possível hoje, num país que se diz europeu e de primeiro mundo, deixar-se o Hospital de Beja sem nada. Este hospital tem dois anestesistas e quatro ginecologistas. Ninguém pode assegurar um hospital destes. O de Portalegre é igual. Enquanto não resolvermos o problema da organização do trabalho e disciplina com uma contratação coletiva em que as pessoas entrem por mérito, fazendo concursos públicos claros e democráticos, não vamos a lado nenhum..Passados quase quatro anos, que balanço faz da relação com este governo? Este ministério, no fim de contas, manteve praticamente tudo o que acontecia com o anterior governo. Aquilo que ficou aprovado no início, que era resolver o problema da contratação coletiva em quatro anos, não foi conseguido. Nem mudámos as horas de urgência de 18 para 12 de forma a que os serviços se organizassem melhor e não fizessem só urgência..Permaneceu tudo igual, porque há uma estratégia de não negociar nada com quem trabalha e só beneficiar a outra parte. Também não quiseram discutir grelhas, gestão democrática, muito menos dedicação plena. A situação é estruturalmente suicidária. Isto leva a que as pessoas não se sintam motivadas e queiram sair para o estrangeiro..O ministro Mário Centeno disse na semana passada que nunca houve tantos médicos no Serviço Nacional de Saúde como agora. Os políticos confundem estatísticas com resultados clínicos. Cem mil médicos no Serviço Nacional de Saúde com esta desorganização não contribuem para resultados muito promissores. Se o senhor ministro for a um banco de urgência num hospital qualquer sem se identificar irá ver de facto que tem esses médicos. Mas a organização dos serviços de saúde obriga a população utente a ir à urgência em vez de ir a uma consulta no médico de família. Porque não existem médicos de família. A contratualização é feita pelo número de dados médicos que se praticam na urgência, na consulta médica e nos hospitais de dia e isso não corresponde a resultados clínicos. Resultados clínicos é saber se a pessoa com esta patologia sobreviveu, se ficou com alguma incapacidade e quanto tempo demorou a recuperar..Aproxima-se o verão, a população desloca-se mais para o Algarve. Há médicos no sul para fazer face às necessidades da estação? E as escalas do centro e do norte, como vão ficar? O Algarve já está mal sem verão. Não há ginecologistas, obstetrícias, pediatras e anestesistas porque há 10 ou 15 anos ninguém programou o envelhecimento da classe. E sem anestesista não pode haver qualquer atividade cirúrgica. Ninguém faz de anestesista e de cirurgião ao mesmo tempo. Em Lisboa, a rotação [nas maternidades] vai mesmo acontecer, porque não há gente suficiente para o evitar. E no dia em que for a Maternidade Alfredo da Costa a fechar vai criar um problema suplementar para as outras maternidades, porque é a Maternidade Alfredo da Costa que recebe todas as gravidezes de alto risco. Um país que tem 1800 médicos de obstetrícia e 45% têm mais de 70 anos: está tudo explicado. Isto não se resolve colocando 127 médicos. Infelizmente, nós estamos numa situação catastrófica e quase suicidária. Só daqui a 20 anos poderá ser resolvido o problema. O que é que andam a fazer os órgãos do ministério, as secretárias de Estado, a Entidade Reguladora da Saúde, a Ordem dos Médicos, as associações regionais de saúde?