Qual deve ser o papel do teatro?.Fiz a guerra em Angola, entre 1966 e 1968, sempre no mato, percebi que o teatro não faz revoluções, mas pode ajudar. Estava há três anos na tropa, faltava-me um mês para sair (tirei o curso de Sargentos Milicianos em Mafra), quando me mandaram para Angola, mais dois anos. Sabiam que era antifascista..A Comuna, Teatro de Pesquisa. E de intervenção?.Sim, é a função do teatro, inquietar e fazer despertar, não dá receitas. Sou contra as receitas, cada um interpreta à sua maneira. A individualidade é muito importante para atingir o coletivo. O coletivo só vive das individualidades, aprendi com o Peter Brook. Disse logo no primeiro dia que quando se perde a individualidade nunca mais se recupera. O ator é um criador onde habita um texto, diz Brook. E, depois, no livro Espaço vazio, explica que não é só o palco que está vazio, o ator tem que se esvaziar para absorver o texto. Fernando Pessoa diz o poeta, eu posso dizer ator. O ator é um fingidor que finge que é dor a dor que deveras sente. Vamos descobrindo coisas em cada peça, todos odiamos, sentimos ciúmes, não somos bonzinhos. Odeio os bonzinhos..Como é trabalhar as peças?.Percebi que temos que nos apropriar dos textos e parti muito de improvisações. Em Portugal, quando fundámos A Comuna, ninguém sabia o que era isso..Quando é que é mais criativo?.Nos ensaios, não é quando estou sozinho, gosto do silêncio. No teatro, quando era mais novo, chamavam-me o bicho do mato..Também na escola?.Aí não, porque jogava muito bem basquete, voleibol, ping pong. No teatro ficava muito tempo sozinho. Vivi com a minha mãe, a minha tia e a minha irmã, muito ocupadas, aprendi a estar sozinho..Muitas peças que adaptou focam a religião, é religioso?.Sou cristão. Fui educado na igreja, na Igreja de Fátima, morava na Elias Garcia, 48 anos. Vim de Tomar com três anos..Tiveram problemas por causa do nome?.As pessoas pensavam que éramos comunistas, outros, hippies. Depois do 25 de Abril é que foi pior, éramos os comunistas. Antes, o povo não falava e os intelectuais eram o nosso público. Havia essa força de ser contra o fascismo..Como assistiu ao 25 de Abril?.Vi tudo desde o princípio, ia com um amigo pôr a Manuela (Freitas) a casa, ao pé do quartel general das Forças Armadas. Vimos tropas, passámos pelo Rádio Clube e vimos tropas, suspeitámos que estava a acontecer alguma coisa. E ainda fomos para Belém, ver se havia alguma coisa. Eu, a Manuela de Freitas e o Carlos Paulo estivemos três dias sem ir à cama, acabámos em Caxias a libertar os presos. Foram três dias maravilhosos..Tem partido?.Não, nunca tive. Gosto de pessoas. Gostei muito do Lucas Pires, dos melhores ministros da cultura, de Sá Carneiro, outro homem inteligentíssimo..Votou nos partidos deles?.Não, nunca na minha vida votei na direita..Citaçãocitacao"As pessoas pensavam que éramos comunistas, outros, hippies. Depois do 25 de abril é que foi pior, éramos os comunistas.".Imaginavam que estariam a festejar os 50 anos da companhia?.Depois de ter participado numa guerra, aprendido o que aprendi, pensei sempre que era para durar. Quando se cria qualquer coisa é para muito tempo. Vivi com uma pessoa 20 anos, de tal maneira que nunca mais vivi com ninguém..Quais foram os melhores momentos da companhia?.Muitos, recordo sobretudo as digressões e os festivais internacionais: França, México, Guatemala, Costa Rica, El Salvador, Colômbia, Venezuela, Brasil, Espanha ....E os maus?.Tivemos vários, enquanto não são aprovados os orçamentos de Estado vivemos de duodécimo. Neste momento, por exemplo, andamos aflitos. Recusámos sempre os subsídios do Estado antes do 25 de Abril, é um princípio, se somos contra não vamos recorrer ao Estado. A Gulbenkian ajudou, o Azeredo Perdigão vinha para aqui conversar. Mas sempre tivemos dificuldades financeiras..Não é por falta de público?.Não, mas os bilhetes são 12,50 euros, com 50% de desconto à quarta. Criei isso no Teatro Nacional e está sempre cheio, aqui também, mas a bilheteira não paga tudo. Temos 100/120 lugares e esta peça é só para 50 pessoas..Como deveria ser para não estarem sempre neste sufoco?.Como em França, as companhias que já deram provas não estão sempre a concorrer aos subsídios..Houve alguma peça que gostasse de fazer e ainda não conseguiu? .Sei que não tenho tempo de fazer todas as peças que gostávamos de fazer, uma vida não dá. E a apresentação de uma peça depende de como está o país, das políticas. Não escolho antecipadamente, daqui a seis meses, se calhar mudou tudo..A Comuna está como imaginava que estaria quando a fundou?.Não. A Comuna foi criada porque o teatro não dava reposta aos anseios, ao que as pessoas precisavam, a não ser o teatro universitário e o teatro amador..Quantos atores tem a peça Fausto?.Nove atores, cada um faz quatro papéis, uma peça com nove pessoas já ninguém faz. Dizem que estou maluco..Concorda?.Não gosto de pessoas normais..O que é uma pessoa normal?.Certa burocracia, que não rompe, que não tem nada de novo. Em qualquer atividade, é preciso saber romper, não entrar no ramerrame, na monotonia. A maioria das pessoas vive por viver, para comprar mais isto e aquilo. É um dos grandes problemas da sociedade..Desiludido?.Não, é o percurso normal. Como foi na Grécia, no Egito, os Maias, duraram dois mil anos e picos. Esta civilização judaico-cristã acabou. E, depois isto do Putin, voltámos ao medo. Viver sempre foi difícil, depende de como se vê a vida. Já está a começar uma nova civilização, com os jovens, que serão uma maioria e a base dessa coisa nova..Qual é a próxima peça?.Apetece-me fazer uma comédia..ceuneves@dn.pt