Há um novo músico na cena musical portuguesa. Chama-se João Gil e tem 46 anos de carreira e muitos sucessos. Um paradoxo explicado nas linhas seguintes. Sentados numa esplanada em Algés, o músico, compositor e agora mais cantor (ler com duplo sentido) mostra-se entusiasmado, e até nervoso, com o novo caminho que aí vem à boleia do seu novo trabalho 46 JG 22..Celebra 46 anos de carreira. Este novo disco, 46 JG 22, tal qual uma matricula de automóvel, é um olhar para o retrovisor ou é novo caminho para ser conduzido? Não é um espelho retrovisor. Achei graça indicar os 46 anos de "rodoviária" seguido das minhas iniciais e o ano de publicação do trabalho. Mas o disco reflete o meu olhar dos últimos três anos, que foi, pela primeira vez, um trabalho inteiramente escrito por mim. Compor música sozinho não foi novidade, e fi-lo esparsamente, sobretudo porque quando se trabalha com grandes atletas ao lado... quando temos um Cristiano Ronaldo, passamos a bola (risos). E sempre me habituei a trabalhar com o João Monge, que é quem escreve melhor em Portugal, e com o Carlos Tê. Aqui nestes disco é diferente, é uma maior auto-observação feita na altura da pandemia, que ainda está aí. Esse período levou-nos a um tempo que nunca tivemos. E com isso consegui juntar letras e canções e colocar-me mais do lado do canto. É quase um novo recomeço de vida, parece o meu primeiro disco. Já fiz tantos discos, mas sinto que os fiz por um grupo, um projeto, uma personagem, uma viagem, sempre foram trabalhos assumidamente coletivos, este é em nome individual..Foi de alguma forma assustador? Não, reflete uma libertação. Isto não quer dizer que não queira voltar a trabalhar como Monge ou o Tê, mas é uma libertação no sentido de conseguir fazê-lo. Também o fiz quando escrevi a canção Saudade, que ainda hoje é um sucesso, mas agora é um ciclo de criação e uma autoexposição assustadora. Mas confesso que o cantar foi uma descoberta fascinante. Descobri que há um artista, entre aspas, novo e que as pessoas não conhecem a cantar. O que cantei lá atrás, no passado, não gosto. Com o tempo que a pandemia me deu dediquei muitas horas por dia a aplicar -me e a ouvir-me, a filmar-me a acertar o tom. Foi como descobrir uma outra pessoa.E em termos musicais, há mudanças também? Necessariamente ao estar muito dependente das minhas capacidades vocais este disco ficou diferente de todos os outros. Aqui não estou a trabalhar para Rio Grande, Ala dos Namorados ou Trovante, estou a trabalhar para mim, e isso muda tudo. É um novo capítulo, estou a começar do zero, e sinto isso nos concertos que já dei com este novo trabalho. Acho que estou outra pessoa..Citaçãocitacao"Este tempo novo, ao contrário, do nosso tempo, leia-se fase The Beatles, é tudo muito mais rápido. E se não se tiver sucesso no dia seguinte há quebras brutais na auto-estima e na expectativa e no teu dinheiro não conquistado para a semana seguinte".....com mais confiança a cantar? Acho que não havia tanta confiança. Se calhar agora estou a refletir mais autoestima, menos medo, e sinto que é possível exprimir ideias e cantar de outra maneira do que tenho feito. É possível ser-se um pouco mais ator e interprete. Não tenho uma voz de ficar de boca aberta, mas acredito que o importante num artista é a soma daquilo que quer transmitir, se tem algo para dizer e se não são um conjunto de banalidades, se há ideias musicais diferentes e se o consegue fazer. E é a soma entre a voz, a matéria, a sonoridade e a produção..Sabe quem está a ouvir este disco? Há possibilidade de estar a ir buscar novos públicos? Há. Esse é o desafio. E o prazer que dá. Enfrentar a estrada de novo, mas sabendo que tenho as costas quentes, claro, seria desonesto não o dizer. Claro que as músicas antigas estão lá e canto-as, mas transportadas para a minha realidade. Mas não estou dependente delas, fazem parte e não as vou renegar, mas quero mostrar que estou disponível para arrancar do zero..As pessoas hoje ouvem a música portuguesa de uma forma diferente? Há alguma evolução de parte do público desde há 46 anos? Há mais atenção, apesar da oferta anglo-saxónica existente? As pessoas nunca estiveram desligadas da música portuguesa, e sabe-se isso quando se sobe a um palco. Não é justo estigmatizar o público português nem os artistas portugueses. A música portuguesa está saudável, diversificada como nunca, há coisas muito interessantes a serem feitas, mas mais na forma do que no conteúdo. Sinto que há muitas novas ideias musicais em todas as áreas da música, e sinto que há uma parte da nova geração que tenta fazer corrente com os mais antigos, e esses são a salvaguarda que há sempre uma ligação connosco. Já disse várias vezes que não teria feito o Rio Grande se o Vitorino não tivesse feito o Semear Salsa ao Reguinho nos anos 1970. Ou seja, há uma corrente. E também sei que agora um António Zambujo ou um Miguel Araújo não fazem música de inspiração alentejana se não houvesse o Rio Grande..E a tal falta de conteúdo, do que se trata? O que sinto, às vezes, é que há menos capacidade de abstração. E nota-se que há menos vocabulário. Não é uma crítica, é um comentário construtivo. Se calhar os músicos mais novos estão à procura de ter mais mundo, de ler mais, porque quando as pessoas leem tem mais capacidade de abstração e aumentam o seu universo. Talvez seja aí que veja alguma má influência que vem de fora, sobretudo em algum mainstream musical, vejo alguma infantilização da linguagem, muito reduzida e circunscrita a um pequeno refrão, muitas vezes num vocábulo. É legitimo, mas se aquilo não pode ser o fim da meta. Sou muito fã da nova geração, gosto muito. Por exemplo, no outro dia fui a ver um concerto de Samuel Úria e adorei, tem muita matéria, substância e capacidade de abstração..Esta nova geração tem a vida mais facilitada que a geração do João? É uma armadilha. É mais fácil porque os meios são mais fáceis, qualquer dia é possível gravar um disco através de um smartphone. Isso é bom porque democratiza e dá espaço a aparecer muita coisa. Os inúmeros programas de televisão também potenciam o surgimento de vozes, vozes, e mais vozes. Mas sinto que este tempo novo, ao contrário, do nosso tempo, leia-se fase The Beatles, é tudo muito mais rápido. E se não se tiver sucesso no dia seguinte há quebras brutais na autoestima e na expectativa e no dinheiro não conquistado para a semana sseguinte. O tempo é muito rápido. Há algo estranho na velocidade de consumo, e tudo se esgota em soundbytes e se potencia nos likes que se recebem. A arte precisa de tempo, para se fazer asneiras e aprender com isso. Fiz discos que hoje em dia olhando para trás e não os fazia da mesma maneira. Mas agora é pior não há tempo para errar. Hoje quem faz asneira, paga caro. E logo a seguir vem outro para o substitui. Mas atenção que isto não é só na música....Estão a fazer concertos este verão e depois há um grande concerto preparado para setembro no Coliseu de Lisboa, são espectaculos que seguem a mesma matriz? Tenho dado vários concertos sozinho, em Silves, em Lagos, por exemplo, e com a minha banda, e esses já com o tal artista novo que estamos a falar. E depois há os concertos Caixa de Luz, com cenografia muito boa feita pela Ana Mesquita. E o espetáculo é a soma das canções e a minha história de vida, com as pessoas que fazem parte dessa história e que as canções marcaram a vida de várias pessoas. E cada canção é um retrato. É um reencontro interessante. E para cada canção foi criado um cenário diferente, pela Ana [Mesquita] com três ecrãs gigantes. E aquilo contagia quem está no palco e envolve quem está a assistir. A Caixa de Luz nasce porque a Ana fez uma caixa de luz, de três ou quatro metros, para a Bienal de Cerveira em 2020, e estavam lá refletidos os tempos da pandemia. Quando vi a exposição fiquei inspirado e achei que devia fazer uma caixa de luz para alguns concertos. E trabalhámos como dupla nisso..Entre as 11 músicas deste novo disco, deste novo João Gil, há alguma que acredite que possa vir a ficar para memória futura? Acho que há algumas, mas são as pessoas que escolhem. Mas vou apontar três temas, que por diferentes razões podem ficar para o futuro: Um Pouco Mais de Atenção, com o Frankie Chavez, e que em termos de arranjos e sonoridade dá pistas daquilo que, musicalmente, vai acontecer na música em geral, na minha opinião. Vamos voltar a um lado mais orgânico, mais tocado, menos máquina, voltar mais ao rock"n roll. Outra das músicas que gostava de referir é A Marcha da Polícia são guitarras elétricas, é orgânico. Mas é uma dica política: os artistas desde há longos anos que se posicionam no mercado pelas ideias, e é importante que eu me possa situar. Escrevi a canção no trânsito, numa situação de pára-arranca na autoestrada a caminho de Lisboa. Na rádio ouvi, no final de 2019, uma manifestação da polícia na Assembleia da República com a extrema-direita a tomar conta da manifestação, com baias de separação em frente da escadaria do Parlamento, e ali caiu-me a ficha. Depois de fazer a letra no carro, cheguei a casa e fiz a música, e nessa música verbalizei a importância do local filosófico, político e ideológico que os artistas se devem manifestar hoje em dia: ser revolucionário é lutar pela continuidade dos valores da liberdade contra a ditadura. Mas esse mesmo revolucionário deve defender a União Europeia e as instituições, no fundo a democracia. Digo isto eu que andei no 25 de abril com 18 anos, estive no Largo do Carmo nesse dia, e depois mais tarde andei a distribuir o jornal Avante... Mas sim, acho que agora é tempo de defender a democracia e as suas instituições. E não, não fui eu que me tornei burguês, mas a esquerda, os progressistas e democratas, que se movem por ideais, têm que se encontrar a defender a democracia. E há muita gente, artistas, a repetir a mesma coisa que eu. Estou convicto que para além do amor, que nos salva, e do apego pela vida e do prazer de estar vivo, que é muito bonito, o sal e a pimenta de estarmos vivos é melhorar a democracia. Essa música é uma referência ideológica. A terceira música é A Serpente e a Maçã, penso que mais tarde ou mais cedo vai ser descoberto. Sintetiza em si a questão de Deus. Questiono muito a Igreja e dou a minha ideia de termos de reinventar Deus. O ser humano usa Deus como ser regulador. Acho que está na altura de a Igreja fazer um enorme exame de consciência, ser mais Eva e menos Adão, senão tem os dias contados..filipe.gil@dn.pt