Joana Marques Vidal foi mesmo corajosa?

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Uma das afirmações mais desoladoras que vi escritas nas últimas semanas foi um recorrente elogio a Joana Marques Vidal, a procuradora-geral da República cessante, que se expressa mais ou menos assim: "Foi corajosa porque investigou os poderosos e os ricos, demonstrando que a Justiça é igual para todos".

Porque é que um procurador-geral da República tem de ser especialmente corajoso para investigar "poderosos e ricos"? Quem chega a este lugar, um dos mais poderosos do Estado, tem alguma razão, objetiva ou subjetiva, para temer seja quem for e seja o que for?

É possível um procurador-geral da República em Portugal temer pela sua segurança, pessoal ou dos seus familiares, por causa de criminosos de "colarinho branco"?... Mas há algum historial de violência no nosso país contra o topo da hierarquia do Ministério Público?... Não me recordo.

Foi habitual os anteriores procuradores-gerais da República em Portugal temerem os senhores do dinheiro, os políticos corruptos, os que se acham donos disto tudo?... Então, porque aconteceu isso? Que instrumentos tiveram esses meliantes para, de alguma forma, "fazerem mal" aos homens que caucionaram a partir do Palácio Palmela, antes de Joana Marques Vidal, as investigações criminais?

Que ameaças atemorizaram, no passado, Cunha Rodrigues? E Souto de Moura? E Pinto Monteiro? Já alguém lhes perguntou? E eles não o negaram mil vezes?...

Não serão criminosos generosamente medalhados pela República, do ponto de vista de ameaça física ou moral, menos perigosos do que, por exemplo, grandes traficantes armados que organizadamente injetam droga nas ruas da República?

Teme o líder da ação penal do Estado o poder político executivo e os barões da finança? Porquê? Teme perder o emprego? Teme ser despedido? Teme passar uma vergonha pública por causa dos media? Teme penalizações na carreira? Teme processos disciplinares? Teme perder dinheiro na reforma?... Isso alguma vez aconteceu?

Se um procurador-geral da República disser "não!" a um Presidente da República ou a um primeiro-ministro, o que lhe acontece?... Que eu saiba, nada. Lembro-me, por exemplo, que Souto Moura andou às turras com Jorge Sampaio e acabou promovido, no final do mandato, a juiz do Supremo Tribunal de Justiça.

Um Procurador-Geral da República, se tiver brio, pode temer, com razão, a realidade, imposta pela hipocrisia do poder político, de não ter no Ministério Público meios suficientes, humanos, financeiros e técnicos, para concluir com êxito investigações complexas.

Desse ponto de vista admito que seria preciso verdadeira coragem para enfrentar as longas investigações a José Sócrates, Ricardo Salgado, Duarte Lima ou qualquer outro famoso, poderoso ou não, sem fazer vista grossa à colocação de notícias nos jornais que, precocemente, arruínam a reputação pública desses suspeitos e, provavelmente, a hipótese de terem uma defesa minimamente eficaz, inquinada à partida por uma condenação de massas, prévia ao julgamento em tribunal, que obviamente contamina sempre o processo judicial.

Joana Marques Vidal teve muitos méritos que se sobrepuseram aos seus defeitos e que foram certamente mais pronunciados do que o da "coragem": competência, trabalho esforçado, discrição pessoal, sentido de responsabilidade, resiliência face às dificuldades do dia-a-dia. Merece, sem dúvida, aplausos.

Alguns, antes dela, não revelaram muitas destas qualidades essenciais, e isso é uma verdade cristalina.

Mas faltou à procuradora-geral cessante a coragem, sim, faltou-lhe a coragem de, verdadeiramente, lutar contra as violações de segredo de justiça e o movimento "agiprop" que divulgam a fé e as fezadas do Ministério Público.

Talvez esse tipo de coragem fosse suicidária para um monte de investigações importantes e, numa mente realista e pragmática que comande a Procuradoria, uma bravata voluntarista dessas, face ao contraponto da falta de meios, não é, simplesmente, equacionável.

O resultado consequente é termos, desde pelo menos a década de 80, uma ação penal do Estado moralmente ambígua e, muitas vezes, legalmente duvidosa.

A segunda parte da frase recorrente que pretende elogiar Joana Marques Vidal não é um erro de análise, é presumir que os portugueses são estúpidos: Desde quando é que a justiça portuguesa "é igual para todos"?...

Passos Coelho, no elogio que escreve à procuradora que nomeou, afirma que "poucos, até há alguns anos, acreditavam que realmente fosse possível garantir de facto, que não na letra da lei e nos discursos, uma ação penal que não distinguisse entre alguns privilegiados e os restantes portugueses"... Mas ele está a falar de que realidade?!

O antigo primeiro-ministro já assistiu a algum interrogatório da Judiciária, do Ministério Público ou de um Tribunal de Instrução?

O antigo primeiro-ministro já viu como ali são tratados os pobres, os remediados, os anónimos da nossa cidadania? E comparou esse tratamento com o que é dado aos senhores doutores e engenheiros de qualquer comarca, aos proprietários, aos industriais, aos banqueiros, aos jornalistas, e a qualquer marmelo que ostente o rótulo de "famoso"? E se viu, acha que, de facto, a ação penal trata todos os portugueses por igual?

O antigo primeiro-ministro já comparou a qualidade e o rigor das acusações levadas a tribunal nos casos que envolvem cidadãos comuns com os que envolvem "alguns privilegiados"?

E a medida das penas pedidas (quando não há intervenção mediática relevante a noticiar estas causas), parece-lhe equivalente e independente "da razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual"? E as sentenças? Respeitam mesmo esta intenção constitucional?

O antigo primeiro-ministro tem ideia de quanto, no fim, custa um processo judicial? De quem o pode pagar? De como o apoio judiciário beneficia um núcleo reduzido de cidadãos e de como muitos trabalhadores, com salários médios, não têm meios para pagar processos criminais ou civis absolutamente banais?

Tem noção de como um pequeno empresário está nas mãos de uma grande corporação se tiver o azar de ter com ela uma disputa em tribunal?

Tem ideia de como a lentidão dos processos favorece os ricos - que podem financiar a exasperante espera pelas sentenças - e prejudica gravemente os pobres?

Tem ideia de como o dinheiro determina a qualidade da defesa, a realização da prova e o número de recursos?

Tem ideia de como a justiça em Portugal continua a ser profundamente discriminatória das classes mais desfavorecidas, apesar de meter na cadeia alguns bodes expiatórios das iniquidades do capitalismo?

Tentar acabar com isto seria, de facto, uma missão para corajosos mas, no essencial, não depende do nome que comanda a Procuradoria-Geral da República: nesse sentido, tanto faz ter lá Joana Marques Vidal como outra pessoa qualquer porque a questão não está no medo ou na coragem de um indivíduo, está na natureza do regime e na mentalidade que o corporiza.

Acabar com uma justiça socialmente discriminatória depende, portanto, de toda a elite que comanda o país e essa, prova-o a evolução de 44 anos de democracia, parece cada vez menos interessada nisso.

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