Jô Soares. O último beijo do "gordo"

Humorista e muito mais, Jô Soares morreu na madrugada de sexta-feira, aos 84 anos, em São Paulo. A imprensa, os amigos e os anónimos descreveram-no como um dos artistas mais influentes da história da cultura brasileira.
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Jô Soares, o eterno gordo da televisão brasileira (e portuguesa), morreu, aos 84 anos, na madrugada de ontem, num hospital de São Paulo onde havia dado entrada uma semana antes para tratar uma pneumonia. A morte do humorista - e ator, apresentador de televisão, escritor, dramaturgo, argumentista, cineasta, pintor... - comoveu o Brasil, país que marcou profundamente ao longo de sete décadas de carreira como pioneiro em géneros como a sitcom, o talk show ou a comédia stand-up.

"Aqueles que através dos seus mais de 60 anos de carreira tenham se divertido com seus personagens, repetido seus bordões, sorrido com a inteligência afiada desse vocacionado comediante, celebrem, façam um brinde à sua vida, a vida de um cara apaixonado pelo país aonde nasceu e escolheu viver, para tentar transformar, através do riso, num lugar melhor", escreveu Flávia Pedras, uma das ex-mulheres do artista, instantes após anunciar a sua morte.

Ao longo do dia, as redes sociais encheram-se de homenagens de companheiros de profissão e muitos anónimos fãs de Jô. Autoridades, como os presidentes da República de Portugal e do Brasil, também reagiram. "Os seus sketches ficaram famosos, algumas expressões entraram mesmo na linguagem corrente, fez-nos rir e pensar durante anos, um grande obrigado a Jô Soares, que hoje saiu de cena, mas não dos nossos corações, nem das nossas memórias", escreveu Marcelo Rebelo de Sousa, em nota oficial de condolências. Já Jair Bolsonaro reagiu no Twitter: "Independentemente de preferências ideológicas, Jô Soares foi uma grande personalidade brasileira que conquistou a todos com seu modo cômico de discutir assuntos profundos. Que Deus conforte a família e o acolha com a cordialidade que o próprio Jô recebia a todos."

Em Portugal, Jô Soares ficou conhecido sobretudo a partir do início dos anos 80 com a exibição de programas como Planeta dos Homens e Viva o Gordo, exibidos originalmente na TV Globo, já a sua carreira artística no Brasil durava há, aproximadamente, três décadas.

José Eugênio Soares nasceu no Rio de Janeiro, a 16 de janeiro de 1938, filho único do empresário Orlando Heitor Soares e da dona de casa Mercedes Leal Soares. Entre os 12 e os 17 anos viveu com os pais na Suíça, onde pensou em seguir carreira diplomática - "mas, em paralelo, sempre ia ao teatro, sempre ia assistir a shows, ia para a coxia ver como era. E já inventava números de sátira do cinema americano; fazia a dança com os sapatinhos que eu calçava nos dedos", contou em entrevista recente ao acervo Memória Globo. De volta ao Brasil, a paixão pelas artes sobrepôs-se, em definitivo, ao amor pela diplomacia e, logo na década de 50, o ainda adolescente Jô inscreveu-se em cursos de teatro e participou em peças e musicais no Rio.

Ao longa da carreira, o humorista fez parte do elenco de clássicos do cinema brasileiro, como Hitler IIIº Mundo, de José Agripino de Paula, em 1968, ou A Mulher de Todos, de Rogério Sganzerla, em 1969, e realizou, em 1976, o filme O Pai do Povo. Nos palcos, celebrizou os monólogos - a stand up comedy - com dezenas de peças, entre as quais Um Gordo em Concerto, de 1994, que ficou em cena por dois anos, e aventurou-se na encenação de clássicos como Romeu e Julieta, em 1969. "Mas tudo o que fiz, tudo o que faço, sempre tem como base o humor. Desde que nasci, desde sempre", disse à Memória Globo.

A estreia televisiva, entretanto, deu-se em 1958, na TV Rio, como membro do programa Noite de Gala, e, depois, como argumentista de TV Mistério, com Tônia Carrero e Paulo Autran no elenco. Em 1960 entrou numa emissora à escala nacional, a TV Record, e mudou-se para São Paulo. O primeiro grande êxito foi como Mordomo Gordon naquela que é considerada a primeira sitcom brasileira, Família Trapo, precedendo a entrada na TV Globo, já em 1970.

Em 1977, criou O Planeta dos Homens e depois o Viva o Gordo, onde alcançou fama, também do outro lado do Atlântico, ao lado de atores como Agildo Ribeiro, Paulo Silvino ou Berta Loran.

Em 1987, saiu da Globo rumo ao SBT, canal que lhe deu a possibilidade de concretizar um sonho antigo: apresentar um talk show. No Jô Soares Onze e Meia foi além do humor e entrevistou os protagonistas políticos, por exemplo, do impeachment de Collor de Mello, marcando a atualidade. "O meu humor tem sempre um fundo político, sempre tem uma observação do quotidiano do Brasil. Os meus personagens são muito mais baseados no lado psicológico e no social do que na caricatura pura e simples", dizia.

No ano 2000, voltou à Globo para um programa em formato semelhante, o icónico Programa do Jô. "Não foi por uma questão salarial, porque a contraproposta do SBT era muito alta. Voltei pela possibilidade de fazer mais entrevistas internacionais, pelas facilidades de gravação, pelo apoio do jornalismo".

"E acho que descobri, também sem querer, a grande vocação da minha vida, a coisa que me dá mais prazer, mais alegria de fazer. Eu me sentia muito vivo ali. A maior atração do mundo é o bate-papo, a conversa", resumiu. O programa durou até 2016, quando Jô decidiu aposentar-se da carreira televisiva.

Nos anos 80 e 90, Jô Soares teve colunas em jornais, como O Globo e Folha de S. Paulo, e revistas, como Manchete e Veja, e nunca perdeu o hábito de escrever sobre a atualidade - nos últimos anos, publicou na Folha artigos avulsos onde criticava, com ironia, o presidente Bolsonaro.

Na literatura, estreou-se com O Astronauta Sem Regime, coletânea de 1983 das crónicas publicadas originalmente no jornal O Globo, e lançou, em 1995, o best seller O Xangô de Baker Street, adaptado para o cinema em 2001 com interpretação do português Joaquim de Almeida. As obras seguintes foram O Homem Que Matou Getúlio Vargas, de 1998, Assassinatos na Academia Brasileira de Letras, de 2005, e As Esganadas, de 2011.

Em qualquer das suas atividades, Jô Soares foi, ao longo dos 84 anos de vida, sempre um protagonista. "Sou muito vaidoso, nunca escondi isso. Qual é o artista que não é vaidoso? Todos. É uma profissão de vitrine de exibidos. Você nasce querendo seduzir o mundo".

Jô Soares teve três casamentos. Entre 1959 e 1979, com a atriz Therezinha Millet Austregésilo, com quem teve um filho, Rafael Soares, falecido em 2014, aos 50 anos. O segundo casamento foi com a atriz Sílvia Bandeira, de 1980 a 1983. De 1984 a 1986 namorou a atriz Claudia Raia e, de 1987 a 1998, foi casado com a designer gráfica Flávia Junqueira Pedras, que anunciou a sua morte.

"Viva você, meu Bitiko, Bolota, Miudeza, Bichinho, Porcaria, Gorducho. Você é orgulho para todo mundo que compartilhou de alguma forma a vida com você. Agradeço aos senhores Tempo e Espaço, por terem me dado a sorte de deixar nossas vidas se cruzarem. Obrigada pelas risadas de dar asma, por nossas casas do meu jeito, pelas viagens aos lugares mais chiques e mais mequetrefes, pela quantidade de filmes, que você achava uma sorte eu não lembrar para ver de novo, e pela quantidade indecente de sorvete que a gente tomou assistindo", escreveu Flávia.

Jô Soares declarava-se "um hipocondríaco de doenças exóticas". "Beribéri, por exemplo, eu nem sei o que é, mas tenho pavor de pegar isso", dizia. Sobre a morte, gostava de citar o amigo comediante Chico Anysio - "uma vez perguntaram para ele: "você tem medo de morrer?".Ele falou: "Não. Eu tenho pena"".

Na sua última publicação nas redes sociais, quinta-feira, escreveu que "não é necessário mostrar beleza aos cegos, nem dizer verdade aos surdos. Mas não minta para quem te escuta e nem decepcione os olhos de quem te admira".

Jô não teve tempo, entretanto, de se despedir dos inúmeros fãs como gostava - "um beijo do gordo!".

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