Jesus como hippie louro e outras reescritas da história

De cada vez que se discute a história imperial e colonial portuguesa surge o clamor "querem reescrever a história". Como se a narrativa solidificada não fosse inevitavelmente interpretação e "escrita", mas verdade revelada em estado puro. E como se não houvesse tanto mito para derrubar.
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Em 2017 fiz uma experiência: fui a uma escola secundária, o Liceu Camões, em Lisboa, para perceber como alunos do 12.º ano da disciplina de História viam a época imperial e colonial. Parte dos estudantes, quando questionados sobre a data da abolição da escravatura, responderam 1761, alguns acrescentando "fomos os primeiros a abolir". A professora ficou surpreendida: "É espantoso como o mito se impõe. Eles aderiram à versão mitificada da história. Sou professora deles, não insisti muito na data de 1761, só falei do marquês de Pombal... Estou surpreendida."

Mas não, não é surpreendente. Como o não é que a maioria daqueles jovens não soubesse, mesmo quando esclarecidos sobre a data "certa" da abolição da escravatura em todo o território português - 1869; em 1761, o então primeiro-ministro, marquês de Pombal, decretara apenas a abolição no território continental, e nem aí totalmente -, o que sucedeu a seguir aos até aí escravos. Estranho mesmo foi que pelo menos um dos estudantes respondesse que na verdade nada mudou: a seguir veio o trabalho forçado, alicerçado num Estatuto do Indígena que criminalizava os assim definidos - esmagadora maioria dos negros que viviam nas colónias africanas - caso recusassem trabalhar. Na prática prolongou-se assim a escravatura, e em termos muito mais económicos para os que queriam usar esse trabalho, já que não tinham de comprar negros mas apenas de os requisitar e alimentar (tendendo a fazê-lo tão mal que a lei teve de estabelecer mínimos, mesmo assim não impedindo mortes por escorbuto e inanição que alguns jornais contemporâneos, como o moçambicano O Brado Africano, corajosamente denunciavam) e pagar um estipêndio que muitas vezes era "retido" durante anos para ser entregue no final, caso o trabalhador sobrevivesse.

Este estatuto de menoridade, subjugação e exploração dos negros, tratados como bestas de carga infra-humanas, permaneceu, com alterações legais que nada mudavam verdadeiramente, apesar da pressão internacional crescente, até 1961. Isto é incontroversamente verdade, existindo ampla historiografia sobre o trabalho forçado, inclusive a partir de descrições "oficiais" (num livro publicado em 2018, Portugal e a Questão do Trabalho Forçado, o historiador José Pedro Monteiro descreve, a partir dos relatórios da administração colonial portuguesa, a realidade encontrada pelos seus inspetores no terreno). O que não há é rasto disso nos programas de História do ensino secundário e muito menos nos manuais - e portanto no imaginário coletivo dos portugueses.

A professora da turma entrevistada em 2017, Cecília Cunha, confirma: "Fala-se da escravatura e do racismo em relação ao século XIX, e mesmo aí a tónica vai mais para as aquisições humanitárias, com Portugal a surgir como exceção no sentido das leis. A questão do trabalho forçado não é muito falada, nem a do Estatuto do Indígena. E de facto o conceito de racismo associado ao colonialismo do século XX não está lá em lado nenhum. É verdade que há uma questão prática: o programa é muito grande e não há tempo para tudo, mas a ideia que resulta pode ser a de Portugal como entidade integradora, de um colonialismo suave. É quase um branqueamento."

Este programa de História de que fala a professora é o mesmo desde 2002 - tem 18 anos. E os manuais parecem ter muito mais, como o trabalho das investigadoras Marta Araújo e Sílvia Maeso comprova e um folhear rápido certifica: para quem como eu fez parte do percurso escolar ainda no Estado Novo (ou seja, antes do 25 de Abril), há um perturbador sentimento de déjà vu em frases como esta que encontrei num manual do 6.º ano: "Os Portugueses traziam de África ouro, escravos, marfim e malaguetas - produtos de grande valor."

Pessoas referidas como "produtos", em pé de igualdade com malaguetas, num livro para crianças de 11 anos? Como perceber que apesar de todos os discursos legais e políticos antidiscriminação permaneça na escola, que é o lugar por excelência para esse combate, uma forma de referir povos subjugados que se utilizada num qualquer discurso público seria considerada inaceitável? Como perceber que os programas do secundário se debrucem sobre racismo a propósito da Alemanha nazi e do holocausto do judeus, assim como da luta pelos direitos civis dos negros americanos, enquanto obliteram o facto de Portugal ter mantido o estatuto de menoridade legal e o trabalho forçado dos negros nas colónias africanas até aos anos 1960? Como sequer enquadrar a Guerra Colonial sem essa informação?

E como não suspirar de exasperação quando, perante este panorama, ouvimos sistematicamente, a propósito de qualquer tentativa de discutir esses assuntos "tabu", que se está a tentar "reescrever a história"?

Evidentemente que não existe a história "pura", "natural", "indiscutível"; toda a história é perspetiva, olhar sobre e reescrita, porque implica descrição, interpretação, contextualização. Mas é um bocadinho demais acusar-se de "tentar reescrever" quem se limita a chamar a atenção para tudo o que foi rasurado, ou de "querer olhar para a história com o olhos de hoje" quem, precisamente, recusa a edulcoração do passado e/ou a permanência de discursos discriminatórios que, esses sim, constituem aparatosa falsificação.

Incompreensível pois que se queira chamar "reescrever a história" à discussão que decorre nos EUA - finalmente - sobre a permanência de homenagens aos "heróis confederados", ou seja esclavagistas, quer sob a forma de estátuas quer de toponímia (inclusive de escolas e bases militares), e sobre o banir da bandeira confederada, que incrivelmente ainda era hasteada em alguns estados. Reescrever a história, como assim? Respeitar a história implicará homenagear os que se rebelaram contra a federação americana, num ato de secessão, ou seja de traição, em defesa da escravatura? São heróis de quem, exatamente? Quem se choca com estátuas suas serem derrubadas sabe sequer quando foram erguidas e porquê?

Essa ideia de que estátuas são "história" e uma vez erguidas não podem ser derrubadas também se aplicará a Hitler, Estaline, Lenine, Saddam, Salazar, Franco? Ou só àquelas figuras em relação às quais temos pouca informação ou cujos crimes consideramos de somenos, porque nos habituámos a desconsiderá-los ou simplesmente nem os conhecemos nem queremos conhecer?

Um bom exemplo da complexidade desta discussão é Jesus Cristo. Encaremo-lo como figura histórica: de que cor era a pele? Como era o seu cabelo? Porque é que, apesar de ter nascido no Médio Oriente, na mesma zona que Maomé e vários outros profetas do islamismo, o vemos quase invariavelmente de pele branca e até de cabelo louro e olhos azuis? Não é essa uma forma óbvia de falseamento e "reescrita" históricos, "raptando" o profeta maior do cristianismo para a "branquitude", num ato de poder simbólico que recusa a possibilidade de render vassalagem a um "escuro"?
Deveriam por esse facto ser destruídas todas as representações desse Cristo? Evidentemente que não, mas não deixam de ser o que são: uma apropriação discriminatória que afirma o poder do mais forte na representação mesma da imagem de alguém que pregou a igualdade, o amor incondicional e o sacrifício pelo outro.

Termo-nos habituado de tal modo à imagem de Cristo como hippie louro que nem nos damos conta do disparate insultuoso que ela contém é a melhor das metáforas desta cegueira que muitos querem congénita. A mesma que permite a tanta gente olhar para a estátua de Padre António Vieira erguida em 2017 e não perceber que celebrá-lo de cruz ao alto, missionário dos "indiozinhos" representados como crianças genéricas, nuas, à volta do pai/protetor europeu, não faz justiça nem a ele nem a nós nem à verdade; é um vandalismo ético e estético que não se pode aceitar.

Mas, como a imagem dominante de Cristo, tem uma virtualidade positiva: demonstrar como a reescrita e o falseamento históricos e o discurso imperial de subjugação dos "primitivos descobertos" continuam a ser naturalizados como "verdade das coisas" e até como "bem" em plena segunda década do século XXI. Pichar a estátua de Padre António Vieira é estúpido, claro, e não é o caminho - se a ideia de quem pichou era insurgir-se contra aquela representação. Mas não mais estúpido que ter autorizado aquele ato de propaganda insultuosa no centro da cidade.

Jornalista

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