Dia 24 de dezembro, terça-feira, véspera de Natal, ano 2019. Às 19.00 de Jerusalém, 17.00 de Lisboa, Francisco Martins, um jesuíta português de 36 anos, parte de autocarro com um grupo de peregrinos franceses com destino a Belém, a cidade onde Jesus Cristo nasceu. São cerca de sete quilómetros de distância, entre eles um checkpoint militar israelita, obrigatório à entrada de qualquer território palestiniano mas que, nesta altura do ano, "até facilita a passagem a peregrinos e a turistas" que ali vão assistir às celebrações de Natal..Não é a primeira vez que Francisco Martins, na Companhia de Jesus há 15 anos e sacerdote há quatro, fará este caminho. Noutros anos, já o fez a pé, sozinho, como peregrino, e em pouco mais de duas horas. Em 2019, o terceiro em que vive em Israel, o caminho poderá parecer menos longo, mas o destino será o mesmo: o Campo dos Pastores, em Beit Shaour, mais ou menos a 2,5 km da cidade de Belém. Foi aqui que os anjos, segundo a Bíblia, anunciaram ao mundo o nascimento de Jesus. E é aqui que, quando forem 21.00 em Jerusalém e 19.00 em Lisboa, o padre Francisco celebrará a missa de Natal, numa das nove grutas que hoje preenchem aquele campo e que foram recuperadas ao longo do tempo pelos franciscanos..A língua em que o fará não importa, até porque naquela noite, naquela madrugada e até na tarde do dia 25 aqueles campos tornam-se verdadeiramente um anfiteatro de Babel ao vivo. "As missas começam às 17.00 do dia 24 e terminam no dia 25. Há muitos grupos, milhares de peregrinos de todo o mundo que ali se juntam e vão assistindo às missas em várias línguas", conta-nos o jesuíta, que vive há três anos em Jerusalém por opção. Foi ali, na Universidade Hebraica, que escolheu fazer o seu doutoramento em Estudos Bíblicos..Para Francisco, o Campo dos Pastores é o local onde se sente verdadeiramente o episódio da anunciação. "Não sei se é romântico, mas dá-me devoção poder celebrar o Natal no sítio onde Deus resolveu manifestar-se. É um local que já não era central naquela altura, já era periferia, e a um grupo de homens, pastores, que ainda viviam mais nas margens. Ir ali e poder celebrar recorda-me este episódio e a mensagem de Natal, o nascimento de Jesus", confessa, argumentando: "É que a mensagem cristã de Natal não é uma cereja no topo do bolo da nossa vida confortável." E quando perguntamos o que é, explica: "Jesus Cristo veio para que aqueles que não têm lugar à mesa possam vir a tê-lo. E isso sente-se no Campo dos Pastores, em Belém." Por isso, juntou-se ao grupo de franceses, com quem já esteve há três anos, e vai celebrar "com muito gosto", porque também gosta "particularmente daquele espaço e daquele episódio do Evangelho", assume..A força da mensagem do nascimento de Jesus nasceu ali, e dali cresceu para outras margens. Os pastores foram a correr a Belém, onde encontraram o que os anjos, segundo conta São Lucas, numa das leituras do Evangelho, lhes tinham dito: Maria, José e Jesus numa manjedoura. E o jesuíta reforça: "Gosto desta imagem.".Não é a primeira vez que irá celebrar missa no Campo dos Pastores. Há três anos também o fez e com o mesmo grupo de franceses, mas também já assistiu à missa de Natal da comunidade católica, na Igreja Matriz de Santa Catarina, dentro de Belém, à meia-noite, cujas imagens todos os anos percorrem o mundo, mas, assume, que não é a que prefere. "Já fui, foi bom saber como é, mas não tenho vontade de voltar", afirma. "É uma missa com muito burburinho e, se quisermos, muito politizada. É ali que vão todas as autoridades, o presidente da Autoridade Palestiniana chega a seguir ao Evangelho e vai-se embora a seguir à homília. É uma confusão. Temos de lá estar duas horas antes também pela segurança e depois a missa é muito prolongada. Foi uma experiência, mas prefiro a calma do outro espaço.".Na Basílica da Natividade não é muito diferente. Aliás, Belém quase que fica "sequestrada" nestes dias pelos peregrinos e pelos turistas. "Há muita festa e luz, ao contrário do que acontece em Jerusalém. É um pouco como no mundo ocidental, só que ali há ainda uma necessidade comercial mais acentuada", explica. "Se Belém era uma cidade fora do centro na altura de Jesus, agora é mais. Não tem nada e vive basicamente da experiência do Natal.".Neste ano, Francisco Martins regressará a Jerusalém ainda na noite de 24. Após a celebração juntam-se a uma comunidade de religiosas franciscanas para celebrarem o seu Natal. No dia seguinte, será a vez de celebrar em casa, na comunidade jesuítica que alberga 11 sacerdotes de 11 nacionalidades, da portuguesa à americana, da holandesa à vietnamita, da sul-africana à sírio-libanesa, da francesa à mexicana, da polaca à eslovaca e à maltesa..Universidade Hebraica sem aulas no dia 25.Neste ano, embora o dia 25 de dezembro não seja feriado em Jerusalém, o jesuíta não terá de ir às aulas, como lhe aconteceu no primeiro ano em que ali chegou. já é bom e significativo." "Foi muito estranho. Mas há dois anos, e apesar de não ser feriado, a universidade decidiu que nesse dia não haveria aulas nem exames, o que é muito bom e significativo". Acredita-se que a passagem do Papa Francisco pela Terra Santa como peregrino tenha contribuído para tal. "O Papa Francisco já conseguiu mudar um pouco a atitude de fundo das relações entre uns e outros, tanto aqui na Terra Santa como um pouco por toda a Europa e no mundo. Ele tem conseguido deixar uma maior curiosidade em relação à herança do cristianismo, sobretudo em relação à sua herança de diálogo, e isso tem tido um efeito positivo.".Quando o Papa Francisco visitou a Terra Santa, fê-lo como peregrino. Tinha de ser, acredita o jesuíta português, pois "é uma terra onde tudo é extremamente politizado, qualquer movimento, qualquer afirmação. Sente-se que é uma terra em conflito, não dá para o negar ou para o esquecer", mas é também uma terra onde diz já ter aprendido muito. "É uma terra com uma cultura muito forte, a cultura do questionamento", afirma.."A quem chega contam sempre a mesma história para mostrarem a diferença, que é esta: a maior parte dos pais na Europa perguntam aos filhos quando chegam da escola "o que aprendeste hoje?" Aqui perguntam "o que é que fizeste hoje na escola?"", ri-se. "É uma cultura que me fascina", assume..O jesuíta português, que estudou Filosofia em Braga, Teologia em Madrid, Filologia e História Antiga em Paris, ficará em Jerusalém até 2021 para completar o doutoramento em Estudos da Bíblia e Antigo Testamento. E se diz que, por vezes, acusa o cansaço de viver em permanente tensão, também é verdade que confessa "estar a viver numa terra que me continua a surpreender. Dou graças a Deus por estar aqui e por ter tido esta possibilidade"..Na faculdade, vive entre judeus, deve ser o único católico, mas sente-se bem. "Fui muito bem acolhido. Ainda hoje estive a beber um café com o meu orientador, que é judeu. Todos valorizam muito o esforço que um estrangeiro faz para aprender a língua local, porque as aulas são em hebraico moderno.".Natal sem iluminações "é estranho".Dia 24 de dezembro, terça-feira, véspera de Natal, ano 2019, em Jerusalém. É um dia absolutamente normal. Francisco, antes de partir para Belém com os franceses, irá às aulas. Sairá de manhã de casa para percorrer a pé o caminho até à universidade..São mais ou menos 15 a 20 minutos, rua após rua, com gente apressada, buzinas de carros, choros de crianças e tudo o mais que caracteriza a vida citadina, apenas com uma diferença em relação a Lisboa ou a qualquer outra cidade do mundo ocidental: ao longo dos passos que o levam de casa às aulas não verá qualquer sinal exterior de Natal. E, nesta época do ano, "é estranho", admite.."Quando se vem do mundo ocidental para um mundo onde não há sinais exteriores de Natal - mesmo que, por vezes, os critiquemos por serem excessivos - sente-se a falta. Eu sinto", afirma sem receio de crítica. E quando lhe perguntamos se esse sentir não é um contrassenso com a mensagem de Natal que o mundo católico passa com o nascimento Cristo, responde: "Às vezes esquecemo-nos de que o essencial também pede o secundário.".Ou seja, "o essencial não exclui automaticamente o secundário, mesmo que o secundário não seja tão puro quanto gostaríamos, ajuda a viver e a celebrar o Natal. A iluminação da cidade de Lisboa não é intrinsecamente má. É boa se nos ajudar a celebrar o Natal. Regressei de Lisboa a 1 de novembro e já começava a haver sinais de Natal em algumas ruas, e a cidade estava bonita", comenta a rir-se..Francisco Martins tem 36 anos, nasceu no início da década de 1980, quando Yitzhak Shamir, um dos homens que fizeram parte da geração que criou o Estado de Israel e que lutou pelo povo judeu, chegava ao poder e se tornava primeiro-ministro. Numa altura em que o número de cristãos na Terra Santa era bem superior ao de hoje..Os dados são escassos, mas em Jerusalém a população atinge os 1,83 milhões e só 1,8% é que são cristãos, entre ortodoxos russos, gregos e católicos. E é em Jerusalém, na cidade velha, entre muralhas, no bairro cristão, que ainda se sente um pouco da vivência do Natal à moda ocidental, mas "sem comparação".."No ano passado, duas amigas, uma portuguesa a viver em Telavive e outra britânica, vieram passar a noite de Natal a Jerusalém e fizeram questão de ir ver as decorações de Natal no bairro dos cristãos. Eu avisei: "Vai ser a maior desilusão das vossas vidas." Mas fomos. Quando chegámos, havia apenas uma ou duas ruas com uma faixa a desejar Bom Natal", ri-se. "Criticamos brutalmente o mundo ocidental pelo consumismo e exagero, mas não haver nada também és estranho.".A Terra Santa, por ser a terra que junta as raízes de três religiões - judaica, muçulmana e católica -, enche-se de peregrinos e de turistas nesta época do ano, mas ali, na terra onde Cristo nasceu, o Natal é só para alguns.