Mestre na defesa, o caranguejo-eremita faz do seu calcanhar de Aquiles, o abdómen mole e exposto aos predadores, um dos traços distintivos que o deixa há séculos sob os olhos de biólogos marinhos. Desprovido da proteção quitinosa espessa que cobre os corpos dos seus pares crustáceos de outras espécies, o caranguejo-eremita aconchega o abdómen no interior das conchas de moluscos mortos. Erigida a defesa, o bernardo-eremita, como também é conhecido aquele crustáceo, transporta-a continuamente, nas expedições de caça que alimentam o seu apetite voraz..Em meados do século XIX, a comunidade científica admitia que o Argonauta argo, molusco cefalópode habitante de águas tropicais e subtropicais, agitava os seus tentáculos a partir do interior de uma concha tomada de assalto, tal como o faz o caranguejo-eremita. A década de 1840 escreveria um novo capítulo na descrição da espécie também encontrada no mar Mediterrâneo. O anúncio de que o Argonauta argo fabricava a sua concha a partir de secreções por si produzidas, chegou de Messina, na ilha da Sicília, a partir de uma voz inesperada nos meios científicos da época, a de Jeanne Villepreux-Power. Francesa, nascida em 1794, Jeanne vivia desde 1818, após casamento com o próspero comerciante James Power, na localidade situada nas margens do mar interior. À mestria na costura, ofício para o qual se formara, Villepreux somou a perseverança no estudo da geologia, arqueologia e história natural..Em 1812, encontramos Jeanne Villepreux a caminho de Paris, desde Juillac, a sua localidade natal. Na bagagem académica, a jovem levava o ensino básico. Jeanne aprendera a ler e a escrever e demonstrava habilidade para a costura. Em 1816, as mãos da francesa laboraram no vestido de casamento da princesa italiana Maria Carolina Fernanda de Bourbon com Carlos Fernando de Artois, duque de Berry. A filha de um sapateiro e costureira franceses não imaginaria, anos mais tarde, ter o biólogo e paleontólogo inglês Richard Owen a apelidá-la de "mãe da aquariofilia". O louvor chegou de uma figura de peso entre a comunidade científica. Owen, fundador do Museu de História Natural, em Londres, merecia estatuto semelhante ao do naturalista Charles Darwin. A Richard Owen é atribuído o batismo das criaturas do passado reveladas nos ossos fossilizados descobertos no sul de Inglaterra. Owen designou-os dinossauros, aludindo ao termo grego deinos sauros, o "lagarto terrível"..Não sendo desconhecido na época, o aquário (ou mais precisamente "viveiro aquático", assim designado na primeira metade do século XIX) ganhou um novo estatuto nas mãos de Jeanne que, não só o construiu em vidro, como lhe encontrou um novo uso, o de meio para a observação e experimentação, tendo como objeto de estudo organismos aquáticos. A bióloga marinha encontrava nos pescadores sicilianos fonte de acesso aos espécimes habitantes das águas da região. A Jeanne, apostada no inventário das espécies marinhas e terrestres da ilha, não lhe bastava dissecar exemplares mortos, antes estudá-los no tempo e nos seus habitats. A também inventora, engendrou três modelos de aquário, adaptados a diferentes meios. Um instalado em casa, outro na linha de costa e um terceiro em alto-mar. Estávamos no ano de 1832 e o aquário instalado em casa de Villepreux-Power revelava o segredo da vida privada do Argonauta argo..A partir do seu refúgio mediterrânico Jeanne publicou duas obras (em 1839 e 1842) inspiradas na vida selvagem e património siciliano. Parte de um legado reivindicado pelo fundo do Mare Nostrum romano. Em 1843, o navio que entregaria na cidade de Londres a coleção natural da bióloga marinha, soçobrou. No naufrágio perderam-se centenas de aguarelas com a assinatura de Jeanne. Juntas, apresentavam 200 espécies de borboletas, lagartas e crisálidas sicilianas..A mulher que deu à ciência o moderno aquário desenvolveu ainda os princípios da aquacultura sustentável na Sicília. O termo cunhado em 1855, designava uma atividade milenar, com exemplos em diferentes geografias, da produção de carpas na China do século II a.C., à Europa dos séculos XV e XVI, com os viveiros e lagos artificias da República Checa, fonte de uma indústria piscícola. No século XIX, Jeanne Villepreux-Power lançou a ideia de armações em ferro, amarradas à linha de costa, por forma a manter diferentes espécies de peixe em fases distintas do ciclo de vida. O objetivo seria o repovoamento do mar circundante..Em 1843, a bióloga regressou a Paris para se fazer oradora pública. Na capital francesa, assim como em Londres, Jeanne enfrentou a descrença de alguns dos seus pares, entre eles o inflamado Henri de Blainville, zoólogo e anatomista francês que, em 1837, retirara a Villepreux os méritos da descoberta da origem da concha do Argonauta. A cientista tornara-se, entretanto, correspondente da Sociedade Zoológica de Londres, onde manteve atividade até à sua morte em 1871. Cento e vinte seis anos depois, o nome da costureira "mãe da aquariofilia", viajou até ao planeta Vénus onde batizou uma cratera de impacto..dnot@dn.pt