Filmar um incêndio, um incêndio que parou o mundo: Notre-Dame. Mas filmar a uma escala de um realismo escancarado, com atores e fogo verdadeiro, mas, ao mesmo tempo, incorporar imagens televisivas e dos telemóveis dos milhares que estiveram a 15 de abril em Paris, em 2019. Uma mistura, uma experiência. Ideia de um jovem? Não, de um veterano de 78 anos, Jean-Jacques Annaud, realizador de pérolas como A Guerra do Fogo e O Nome da Rosa, mas também de equívocos como Black Gold ou A Hora do Lobo. Ele próprio que esteve em Lisboa para uma tarde de intensa promoção deste Notre-Dame em Chamas, sempre com um sorriso de um cavalheiro e uma sinceridade desarmante.."O que quis foi literalmente colocar a plateia no meio do fogo. Este filme nasceu de um desejo de dar às pessoas algo que justifique a saída das suas casas para uma sala após a pandemia. O cinema tem de ser mesmo uma alternativa à televisão. O som imersivo e o tamanho da tela têm de nos dar uma ideia de experiência. E as pessoas estão habituadas a ver o fogo de longe, mas senti-lo de perto é uma outra coisa. O meu prazer foi fazer um filme destes com esta escala e dar-lhe uma roupagem de suspense", começa por dizer. Em Portugal, Notre-Dame em Chamas estreou-se precisamente nas salas IMAX para que a experiência que o cineasta sinaliza tenha maior potência. A questão é perceber-se como se seduz o público para um espetáculo onde se sabe o seu final e sem estrelas de cinema. Talvez pelo nome de Annaud, um explorador da imagem e dos conceitos....Quando lhe falo que há algo de engenheiro na sua maneira de filmar, concorda e adianta: "Às vezes é preciso pensar em coisas novas e torna-se difícil explicar. Quando fiz O Urso perguntavam-me quem estava dentro do urso e eu lá ia dizendo que era um urso de verdade. Mas depois diziam que era, afinal, um documentário - lá tinha de dizer que também não era... As pessoas antes de verem os meus filmes não calculam o que eles na verdade são. Odeio a ideia de se fazer um filme que se pareça com outro, mesmo quando sei que todos os filmes são iguais. Aqui, apesar de misturar imagens verdadeiras, o que faço é mise-en-scéne. Quando era estudante de cinema lembro-me de lutar para nunca fazer o mesmo filme duas vezes..."..Depois de ter vencido o César, o Óscar (melhor filme estrangeiro, Pretos e Brancos a Cor) e uma série de outros prémios, Annaud sente-se um pouco à parte no panorama francês, sobretudo por ter já estado em Hollywood. Provavelmente por isso, recentemente lançou um livro com as suas histórias de rodagem mas confessa que ficou algo desalentado: "As pessoas pensavam que iam encontrar coisas escandalosas ou tentar perceber com quem fui para a cama, enfim... Francamente, a minha vida privada não é muito interessante. A minha vida é apenas o cinema e as pessoas querem é escândalos. Por exemplo, para este construímos muitos cenários para seis meses depois já estarem a ser queimados. Se pensa que as pessoas acham isso interessante, esqueça...". Já agora, convém dizer, este filme foi bem caro: a réplica da catedral tem o mesmo tamanho... Por isso mesmo, François Pinault, o famoso milionário, foi um dos financiadores, o que para o realizador não constituiu qualquer tipo de constrangimento: "foi ele quem me procurou: queria ver a preparação de um filme! Perguntou se podia visitar a pré-produção e levei-o às oficinas onde preparavam as esculturas e a recriação de todo o edifício. Ficou fascinado, no fundo, é um carpinteiro! Foi de um charme incrível mas nunca falou de dinheiro. Só depois é que foi falar com o meu produtor para se juntar ao filme... Porque não? Estava mesmo interessado na maneira como executámos tudo, ao contrário do que costuma acontecer com os executivos dos estúdios". Quem tiver visto recentemente O Peso Insuportável de um Enorme Talento, com Nicolas Cage como Nicolas Cage, talvez se ria com este conceito de um milionário a financiar cinema....Ainda voltando ao seu pé atrás com a perceção da indústria (e imprensa) francesa, não esconde mais uma irritação: "Quando estava na Sony, em Los Angeles, sob contrato, em França pensavam que era um escravo. Só que era o contrário: estava absolutamente livre! Acreditem ou não, era visto não como um contratado mas como um homem com visão. E como homem com visão tive carte blanche, mas em França não conseguem compreender isso... Claro que tinha a direito a limousine e tudo, mas isso não conta - estou a marimbar-me. Sou mais um gajo da carrinha. Há cinquenta anos, quando era jovem, já achava que a Nouvelle Vague estava esgotada, morta... Mas hoje ainda estão a fazer filmes tipo Nouvelle Vague. E atenção que acho que o cinema tem de ser diversificado, só que não: dos 340 filmes que são feitos em França uns 320 são Nouvelle Vague ainda e isso não pode ser. O cinema de autor a ficar uma indústria... Talvez por isso, muito raramente apareço nas listas dos realizadores franceses. Possivelmente, porque acham que sou um cineasta internacional ou porque nos últimos 40 anos vivi quase sempre fora de França, embora me sinta terrivelmente francês. Fui rejeitado do clube e tudo começou quando cheguei a ser uma estrela dos filmes publicitários, isso é pior do que ser dono de um bordel"..dnot@dn.pt