No século passado, antes da fatídica ascensão dos talibãs, a mulher afegã adquiriu o direito ao voto (nos anos 1920) e o direito à igualdade de género (nos anos 1960). Em 1977 as mulheres representavam mais de 15% do órgão legislativo mais poderoso do Afeganistão, estimando-se, ainda, que no início dos anos 1990, 70% dos professores, 50% dos funcionários públicos e dos estudantes universitários e 40% dos médicos em Cabul eram mulheres (Comissão sobre a Situação da Mulher, ONU). Em 1996 teve lugar a trágica conquista da capital pelos talibãs a que se seguiu a contínua implementação de normas e orientações em clara contravenção dos direitos fundamentais das mulheres afegãs, que se viram privadas de direitos e liberdades basilares (como, por exemplo, a liberdade de expressão e de circulação, o direito ao trabalho, à educação, a cuidados de saúde, à integridade física e até à vida). Os atentados, flagrantes e avassaladores, incluíram como sabemos código de indumentária (por exemplo, burca e calçado que permitisse caminhar silenciosamente) e de comportamento (por exemplo, saídas só com familiares do sexo masculino sob pena de fustigação ou de apedrejamento, janelas com vidros pintados para impedir a visualização da mulher afegã em sua casa, estupro, sequestro e casamento forçado)..Golias (termo que emprego para indicar, apenas, o poder, a autoridade e a influência da parte em questão) apareceu em 2001, com a queda das Twin Towers, que levou os EUA a concluírem, entre outras coisas, que a mulher afegã subjugada que estava a um sombrio apartheid de género requeria a protecção da comunidade internacional. Golias actuou incisivamente e em 2003 foi ratificada a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, em 2004 a Constituição estabeleceu no seu artigo 22 o princípio de igualdade de género e em 2009 foi aprovada a Lei para a Eliminação da Violência contra as Mulheres que proibiu 22 crimes (incluindo estupro, espancamento e casamento forçado). Neste contexto a mulher afegã readquiriu, finalmente, ainda que sobretudo nos meios urbanos, direitos e liberdades fundamentais. A expectativa de vida da mulher afegã passou de 56 para 66 anos e abriram-se-lhe múltiplos caminhos profissionais (tornaram-se advogadas, juízas, médicas, professoras, engenheiras, atletas, activistas, políticas, embaixadoras, jornalistas, empreendedoras, polícias, militares, etc.) de tal modo que, em 2020, 27% dos assentos parlamentares eram por elas ocupados (Banco Mundial, Amnistia Internacional)..Eis que Golias decide sair. Bem sabemos que se trata de um Golias enfraquecido política e economicamente e que actores mais fortes, como a China, eclodiram. É difícil, todavia, justificar a assinatura de um dramático acordo com os tenebrosos talibãs que deixa o destino da mulher afegã dependente de negociações domésticas (leia-se: da boa vontade dos inclementes talibãs). Tem cabido ao embaixador interino dos EUA em Cabul, Ross Wilson, suprir esta grave lacuna diplomática por meio de tweets que revelam a sua genuína consternação: já alertou para a crescente violência dos talibãs, constatou a corrente e impune violação de direitos fundamentais e solicitou aos talibãs que agissem de boa-fé. Os talibãs ou não leram os tweets ou ignoraram os apelos neles contidos. O que é certo é que em Junho a missão da ONU no Afeganistão reportou que o número de mulheres afegãs mortas e feridas nos primeiros seis meses de 2021 montava ao dobro do número registado em 2020 (para o mesmo período). E, em Julho, os talibãs que assumiram o controlo de Badakhshan e de Takhar emitiram uma ordem segundo a qual os líderes religiosos locais teriam de fornecer uma lista de raparigas com mais de 15 anos e de viúvas com menos de 45 anos para "casamento" com talibãs combatentes (Hindustan Times) - um crime de guerra atento o facto de que a IV Convenção de Genebra e o Protocolo Adicional II exigem protecção para as mulheres e crianças contra violação, prostituição forçada e qualquer outra forma de atentado ao pudor. Trata-se de um alerta do que está por vir e um lembrete do regime brutal que vigorou entre 1996 e 2001..A verdade é que sem a intervenção da comunidade internacional a catástrofe humanitária será inevitável, com presumíveis repercussões pela região fora e para além desta. O mundo não pode nem tem de olhar para o lado enquanto os talibãs avançam. Os EUA e a União Europeia continuam a ser a maior fonte de ajuda económica e humanitária ao Afeganistão, assim mantendo um certo grau de influência que pode e deve ser usado para bons fins. Designadamente devem deixar claro que a falha sistemática na defesa de direitos fundamentais mínimos da mulher afegã, consagrados que são em instrumentos internacionais, levará à retirada de assistência económica, no todo ou em parte - condição que requer um sistema de monitorização de cumprimento desses direitos. Caso contrário, a mulher afegã não resistirá às trevas de um regime cruel, feroz, atroz e desumano, cuja escuridão começa de novo a cobrir o país. Se a comunidade internacional permanecer imóvel, o destino da mulher afegã será infame e intolerável, reduzido a uma prisão de tecido que representa acima de tudo uma prisão física e moral - infernal, insuportável, inaceitável e inadmissível..Fundadora do Gabinete de Propriedade Intelectual/Intellectual Property Office (GPI/IPO) e associate, CIPIL, University of Cambridge.Escreve de acordo com a antiga ortografia