Jane por Charlotte. Em nome da mãe e da filha
O que fazer com as Gainsbourg? Mãe e filha, ambas atrizes, modelos e cantoras... Jane Birkin, a mãe e Charlotte Gainsbourg, a filha, órfãs de Serge, aqui com direito a presença espiritual. O olhar é da filha numa investigação sempre na primeira pessoa, como um processo tão natural como íntimo e doloroso. Um documentário sem medo de abrir feridas e de as poder sarar à frente da câmara, coisa brava, coisa cândida...
O filme estabelece-se por uma série de encontros entre mãe e filha. Começa em Tóquio, onde Birkin está em digressão e Charlotte também acompanha a mãe em alguns temas. Mais tarde, corte para a casa de campo da família. Seguem-se passeios, refeições mas tudo pára quando chega a altura de confissões: "Quando tinhas 14 anos estava morta por te ver nua. Pedi para te tocar nos seios", recorda-se Jane. Percebe-se que entre as duas houve sempre uma distância, um ato de pejo. Curiosamente, Charlotte sentiu a mesma curiosidade com o corpo da filha. Entra-se no âmago dos afetos que só mães e filhas experimentam - nesse sentido, o filme ganha um cunho extremamente feminino, mesmo quando é incontornável a lembrança do dueto entre Serge e a pequena Charlotte. Chamava-se Lemon Incest e na altura trouxe algum escândalo.
A câmara de Charlotte é livre e muitas vezes selvagem. Acima de tudo, preza-se o momento e não há qualquer indício de perfeccionismo, sendo que algumas vezes se mostra o aparato da própria equipa, um pouco como que a revelar a mentira do cinema perante a cerimónia de intimidade forjada. De maneira aberta, Charlotte mostra a manipulação da verdade, a sua verdade, a verdade da mãe. E, dessa forma, compreendem-se os momentos de silêncio. O que não se diz perante o trauma do passado, o indizível nisto do amor. Sim, porque nestes 89 minutos nunca duvidamos de uma corrente de amor entre estas duas mulheres: Charlotte mais firme, mais protegida, Jane mais frágil, mais devorada pelo tempo.
Neste arraial dos documentários a explorarem a vida íntima (não confundir com vida pessoal...), Jane par Charlotte não exclui uma abordagem perto da pura psicanálise. Há cenas que são montadas como momentos de sessões e o plateau torna-se num divã. Por vezes, é um efeito algo forçado, noutras uma mais-valia dramática. A Charlotte Gainsbourg cineasta quer um efeito emocional, a Charlotte Gainsbourg filha não deixa de ser atriz.
E é precisamente nos momentos em que Charlotte pega na câmara de forma primitiva e sem a equipa que o clima fica mais tenso. Aquela tensão que se desvia dos procedimentos de alguns documentários meramente hagiográficos ou com encomenda de tributo. Aí, mais do que nunca, fica uma sensação de partilha de duas vidas extraordinárias, onde ambas falam do percurso artístico e pessoal, percursos que propositadamente se confundem, sobretudo quando ficamos mais perto dos tormentos de Jane Birkin, artista que expõe as suas insónias e o seu processo de envelhecimento ou como a palavra tormenta se confunde com ternura...
Se quisermos, a filha soube proteger a mãe dessa inquietude dolorosa, mas dá ao espectador o drama que dali passa, um pouco como se as recordações de uma vida cheia fossem um caleidoscópio de dor e glória amorosa. Jane por Charlotte consegue o que promete: um verdadeiro e genuíno encontro de mãe e filha.
Jane por Charlotte teve estreia no Festival de Cannes e a partir daí tornou-se coqueluche em outros festivais. Agora, em Portugal, estreia-se num esquema muito singular de exibições esporádicas numa operação da sua distribuidora e plataforma, a Zero em Comportamento, propondo uma espécie de tour do filme em vários locais e dias, alguns deles seguidos de conversas. A particularidade desta operação consiste também em levar esta obra a locais que não são obrigatoriamente salas de cinema.
A estreia oficial acontece esta sexta-feira na Biblioteca de Marvila, pelas 21h00 e tem o custo por bilhete de 4 euros. A digressão prossegue no dia seguinte em Cascais, no Cinema da Vila, também em sessão única, às 19h30. Nesse mesmo dia, às 18h00, em Lisboa será a vez da Biblioteca de Alcântara, espaço que tem um potencial muito simpático para o cinema. Dia 18, é a vez da Biblioteca Orlando Ribeiro, em Telheiras, pelas 21h00. Por fim, será a vez do Auditório Carlos Paredes, em Benfica, dia 24, também às 21h00. Trata-se de um circuito que mais tarde se vai estender a outras localidades e que nesta fase evita as chamadas salas de cinema tradicionais, todas elas a sofrerem com o facto de haver ainda muita relutância do público em querer assistir a um filme de máscara, já para não mencionar o elevado e incomportável número de estreias. Uma avalancha de filmes que deixa qualquer espectador desorientado.
De alguma forma, esta proposta da Zero em Comportamento enceta um caminho alternativo na distribuição que talvez obrigue a refletir sobre a atual situação da distribuição em Portugal. Quase que se torna óbvio que este tipo de estreias não convencionais vai ser cada vez mais comum no que toca ao cinema de arte e ensaio, mesmo que a nível de negócio os valores sejam na ordem do simbólico e a pensar numa lógica final da exploração em plataforma...
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