Jane Birkin.Uma musa da cultura francesa das décadas de 60/70

Cantou o lendário <em>Je t"aime moi non plus</em>, com Serge Gainsbourg, mas a sua vida não cabe numa canção. Na música e nos filmes, Jane Birkin foi uma figura multifacetada da cultura francesa, preservando sempre o seu sotaque britânico - faleceu este domingo, em Paris, contava 76 anos.
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Actriz e cantora, ativista pelos direitos humanos, musa e símbolo do imaginário das décadas de 60/70, Jane Birkin faleceu este domingo, em Paris - contava 76 anos. Foi encontrada sem vida no seu apartamento; a sua saúde estava fragilizada desde setembro do ano passado, quando sofreu um acidente vascular cerebral.

A história de Birkin, incluindo as componentes lendárias dessa história, é inseparável da figura de Serge Gainsbourg (1928-1991), com quem viveu entre 1968 e 1980. O começo da sua vida em comum (nunca se casaram) ficou para sempre associado ao álbum que editaram em 1969, Je t"aime moi non plus, e muito em particular à canção-título. As componentes sexuais da letra, reforçadas pelo intimismo da interpretação e pela sugestão de êxtase no final, suscitaram diversas condenações morais, nomeadamente do Vaticano, através do seu jornal L"Osservatore Romano. Numa entrevista de 2009 ao jornal londrino The Daily Telegraph, Birkin revelou que, nesse contexto, Gainsbourg terá dito que "o Papa foi o nosso melhor agente de relações públicas". Na altura, alguns países interditaram a difusão da canção; em França, as rádios só estavam autorizadas a emiti-la depois das 11 da noite.

Numa publicação no Twitter, Emmanuel Macron exaltou o seu legado de "músicas e imagens". Sublinhando a dimensão nacional desse legado, escreveu o Presidente de França: "Porque ela encarnava a liberdade, cantando as mais belas palavras da nossa língua, Jane Birkin era um ícone francês." Assim é, sem dúvida, para mais através de um paradoxo identitário: filha de uma actriz e um oficial da Marinha britânica, Birkin nasceu em Marylebone, na zona de West End, no coração de Londres, no dia 14 de dezembro de 1946.

A referência fundadora da sua carreira tem a ver com o cinema inglês. Aliás, mais exatamente com uma produção inglesa, rodada em Londres, com realização de um mestre italiano, Michelangelo Antonioni: Blow-up (entre nós: História de Um Fotógrafo), crónica trágica e poética de um fotógrafo, interpretado por David Hemmings, que se vê enredado numa teia de ameaças depois de, sem dar conta disso, ter fotografado uma zona de um jardim público onde poderá ter sido cometido um crime. Na altura já casada com o compositor John Barry (responsável por várias bandas sonoras de filmes de James Bond), Birkin participava numa cena de nudez, que, na imprensa tabloide, foi eleita como símbolo daquilo que seria a dimensão "provocatória" do filme.

Em 1968 foi ainda o cinema a definir o seu destino público e privado. Assim, na rodagem do drama Slogan, de Pierre Grimblat, conheceu Gainsbourg: além de assumirem as personagens principais, partilhavam a interpretação de La Chanson de Slogan, primeira de muitas colaborações musicais, incluindo o já citado Je t"aime moi non plus. Foi o "passaporte" para começar a viver em França. No mesmo ano, integraria o elenco de um dos maiores sucessos da produção francesa da época, A Piscina, policial romântico que ajudou a definir uma certa ideia de liberalização de costumes, incluindo as componentes eróticas das suas narrativas - Birkin contracenava com Alain Delon, Romy Schneider e Maurice Ronet, sob a direção de Jacques Deray.

O seu primeiro álbum a solo, Di Doo Dah, surgiu em 1973, num estilo sofisticado, cruzando a herança da chanson française com ritmos pop rock capazes de reforçar o efeito peculiar do seu francês dito com inequívoco sotaque britânico. A colaboração com Gainsbourg prolongava-se, por exemplo, numa canção que é uma eloquente ilustração do jogo de ambiguidades com que Gainsbourg gostava de pontuar as suas composições: intitula-se La Décadanse, escrito assim mesmo, combinando as palavras "decadência" e "dança".

Seguiram-se vários registos discográficos, como Lolita Go Home (1975), Baby Alone in Babylone (1983) ou Amour des Feintes (1990), contando sempre com temas compostos por Gainsbourg. A estreia em palco ocorreu apenas em 1986, aos 40 anos, na sala do Bataclan, em Paris: o registo desse concerto, Jane Birkin au Bataclan, seria editado um ano mais tarde.

Je t"aime moi non plus também se transfigurou em cinema, através do filme homónimo de 1976 que o próprio Gainsbourg dirigiu, encenando os amores atribulados da personagem de Birkin com um homem errante interpretado por Joe Dallessandro (na altura popularizado por uma trilogia de filmes de Paul Morrissey, produzidos por Andy Warhol). Não será propriamente um clássico, mas valeu a Birkin a sua primeira nomeação para os Césares do cinema francês, na categoria de melhor actriz.

Depois de participar em duas adaptações de Agatha Christie - Morte no Nilo (1978) e Morte ao Sol (1982) -, seria de novo nomeada na mesma categoria graças a A Pirata (1984), de Jacques Doillon, cineasta que foi seu companheiro de 1980 até 1991; contracenava com Maruschka Detmers (a holandesa que, um ano antes, se revelara em Nome: Carmen, de Jean-Luc Godard), interpretando um par de amantes secretas em confronto com o marido da segunda, por sua vez interpretado por Andrew Birkin, irmão mais velho de Jane. Entre outros títulos marcantes da sua filmografia vale a pena citar Atenção à Direita (1987), de Jean-Luc Godard, A Bela Impertinente (1991), de Jacques Rivette, com nova nomeação para os Césares (melhor actriz secundária), É Sempre a Mesma Cantiga (1997), de Alain Resnais, e ainda 36 Vistas do Monte Saint-Loup (2009), derradeiro filme de Rivette, livremente inspirado na vida do escritor Raymond Roussel.

Dois filmes podem ajudar a resumir os contrastes da vida de Jane Birkin, quanto mais não seja porque o seu nome surge citado nos respetivos títulos, curiosamente ambos referindo também as suas realizadoras. Jane B. por Agnès V. (1988) é uma "biografia imaginária" que Agnès Varda dedicou à sua amiga, revisitando memórias e imagens em que a realidade evocada está sempre contaminada pelos mais surpreendentes delírios surreais. O segundo, Jane por Charlotte (2021), foi realizado pela sua filha Charlotte Gainsbourg, e tem qualquer coisa de contundente e comovente testamento (está disponível no videoclube da Zero em Comportamento).

Charlotte nasceu em 1971, da ligação com Serge Gainsbourg. Foi a segunda filha de Jane Birkin, depois de Kate Barry, filha de John Barry - Kate faleceu em 2013, aos 46 anos de idade, de aparente suicídio. Da relação com Doillon nasceu Lou Doillon, em 1982, também actriz de cinema. Em Jane por Charlotte, mãe e filha dialogam sob o signo de Gainsbourg (revisitam a casa que habitaram), tentando dizer o que viveram e aquilo que, talvez, tenha ficado por viver. Logo no começo, a mãe diz assim: "Como tu me intimidavas, em criança, sentia-me muito privilegiada por estar na tua presença. Não era uma coisa banal." E aí Jane interrompe-se para conter as lágrimas: "Ah, isto começa bem..."

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