Nos últimos dias, o artista Frederico Draw tem estado a pintar um mural gigantesco em São João da Madeira. A pintura com 15 metros de altura e dez de largura não é o que costuma pintar habitualmente - trata-se de um mural dedicado ao capitão Salgueiro Maia, a propósito dos 45 anos da Revolução de 1974..Foi a autarquia local que desafiou Frederico a pintar novamente Salgueiro Maia em grandes dimensões, como já acontecera por ocasião dos 40 anos do 25 de Abril numa parede da Universidade Nova em Lisboa, onde com mais três artistas da plataforma Underdogs se encarregara também do rosto do capitão feito sobre uma fotografia de Alfredo Cunha..A arte do mural político está em queda há vários anos e são poucos os murais que restam dos tempos áureos do pós-Revolução, momento em que as melhores paredes de todo o país eram disputadas pelos vários partidos para transmitirem propostas políticas e programáticas. Através desses murais pôde-se durante muitos anos fazer uma história paralela dessa época e das suas movimentações políticas, como ainda se pode observar em algumas imagens reproduzidas nestas páginas, recolhidas pelo Centro de Documentação do 25 de Abril da Universidade de Coimbra..O que Frederico Draw está a desenhar, trabalho em que conta com a colaboração de um outro autor, Contra, é um regresso inédito ao mural político de grandes dimensões, que nos anos de 1970 e 1980 se reproduzia da noite para o dia em grande número. O muralista não costuma pintar temas políticos e só o fez nestas duas vezes por serem encomendas. "Foi-me lançado este novo desafio para realizar um mural de homenagem ao 25 de Abril, onde se pretendia colocar uma figura representativa. Entreguei o projeto, foi aprovado e aqui estou a fazer o trabalho." Se a chuva não ajuda porque as tintas precisam de uma base seca, mesmo assim vai avançando. "Será como tenho feito milhares de vezes, a coisa vai acontecer e surgir como eu desejo.".Quem olhar para o mural em São João da Madeira não será capaz de esquecer os antigos murais políticos. Frederico assume o seu interesse e investigação nessa arte de há poucas décadas: "Conheço bem os murais do pós-25 de Abril porque são muito importantes para quem hoje faz este tipo de pintura. Era muito novo mas vi-os, até porque a história do muralismo passa por aí.".Rosário Félix faz parte dessa história. Nos anos 1970 e 1980 pintou muitos dos murais do MRPP. "Agora é com elevadores e não com andaimes como antigamente, quando íamos a alturas que assustavam e passávamos os dias a subir e descer escadas. E antes era mais difícil do que a seguir ao 25 de Abril porque o trabalho tinha de ser muito rápido e tínhamos de fugir antes que a polícia viesse. Eram mais pichagens com palavras.".Com a liberdade, os murais passaram a ser bem mais elaborados, mas o perigo não diminuiu logo nos pós-Revolução pois os espaços eram muito disputados: "Havia muitos partidos a reivindicar os melhores lugares e tínhamos de ser muitos rápidos na execução." Há um mural que Rosário recorda com alegria, o de apoio à primeira candidatura presidencial do general Ramalho Eanes: "É o meu preferido!" Foi onde sentiu a pressão revolucionária dos tempos: "Fomos para o Instituto Superior Técnico e escolhemos uma parede, mas já lá estava um cartaz do Otelo Saraiva de Carvalho e os seus apoiantes mantinham-se de guarda. Houve uma grande confusão, as tintas entornaram-se, sujámos as roupas e arriscámo-nos a levar uma tareia se não fossem os populares que assistiam. Estes deram-nos dinheiro para comprar novas tintas e roupa e ficaram a tomar conta de nós. Até posaram para as desenharmos no mural.".Os murais iam variando conforme os locais do país e muitas vezes tinham elementos próprios da região. "Numa campanha para as autárquicas fizemos murais em muitas cidades, para onde levávamos a ideia que queríamos transmitir e à qual acrescentávamos apontamentos locais que queríamos integrar." São murais de uma outra fase, quando já havia mais tempo para pensar os trabalhos: "Houve um mural especial que fizemos numa empena de um prédio de três andares em Cabo Ruivo. Primeiro foi a pesquisa, analisámos as várias propostas e só depois de três meses a preparar é que fomos para o local.".Também os fazia em poucas horas: "No Mercado da Ribeira pintei um mural com uma amiga em duas horas." Não foi o caso do mural gigante entre a 24 de Julho e Alcântara, em Lisboa. "Uma espécie de banda desenhada em que cada quadro transmitia a política do MRPP para os vários setores da sociedade: os soldados, os pescadores, as mulheres, os estudantes." Na pintura, havia sempre as cores habituais: "As palavras de ordem eram em amarelo e vermelho e já estavam decididas por antecipação.".Uma vez em Olhão, "uma rapariga esteve a ver-nos durante muito tempo e depois desapareceu. Quando voltou, pediu para a desenhar. Tinha ido mudar de roupa para uma que achou que a deixava mais bonita"..Os muralistas do Partido Comunista Português são responsáveis por muitos dos murais no país, uma tradição que vem de muito antes do 25 de Abril de 1974, quando era a época do pinta e foge para não ser apanhado pela GNR. Após a Revolução, o mural ganhou especialistas no partido que pintaram o país de norte a sul. Até hoje, pois entre as novas gerações de comunistas está uma candidata da CDU às próximas eleições para o Parlamento Europeu, Alma Rivera, que tem experiência na pintura de murais nos tempos mais recentes..Na velha escola do PCP não faltam nomes e memórias, como Filipe Rua, militante desde os 18 anos, quando trabalhava no estaleiro da Lisnave no cais da Rocha de Conde de Óbidos. Era operário e fazia parte da organização do PCP, um dos que ajudavam na divulgação das mensagens políticas do partido: "Cada um fazia o que podia, pintar murais era uma das minhas ocupações." O projeto era feito nos centros de trabalho do PCP ou em casa de um deles. "Acertava-se o dia, a cor das tintas, levavam-se réguas e esquadros, máquinas e iluminação." É de um desses murais que recorda ter pedido emprestado na Lisnave um cabo elétrico com cem metros para iluminar a pintura noturna de um mural na Avenida 24 de Julho: "Tinha 200 metros de comprimento e era preciso eletricidade para projetar o fundo branco ao longo da parede. Combinei com um operário das oficinas da câmara ali perto e ele ligou-o à tomada.".Cada parcela do mural tinha dez metros de comprimento por dois de altura e seguia um modelo. A precisão era uma preocupação: "Nada era feito a olhómetro!".Esse mural foi feito por trinta pessoas: "Foi uma noite inteira a pintar. Uns desenhavam com escantilhões as letras e outros seguiam-lhes os passos a encher as letras. Dividiam-se as tarefas de acordo com o jeito de cada um, alguém dedicava-se às letras, outro mais habilidoso pintava a bandeira, a foice e o martelo. Nesse tempo havia muitas caras: era uma altura em que se usava muito o Engels, o Marx e o Lenine. Era da praxe!".Entre as recordações de aventura muralista está a pintura de uma frase no casco afundado do navio Tollan em frente à Praça do Comércio: "Fui pintar duas vezes o Tollan", diz Filipe Rua. "Numa noite pintámos o slogan "Soares, Freitas e Balsemão rasgam a Constituição" em letras com dois metros de altura. Foi difícil porque era no casco do navio e de cima para baixo." Dessa ação tem recordações mais nítidas porque um professor universitário que colaborava com a equipa andou dias a fio a descrever a manobra: "Ele ficou em terra a ver o trabalho enquanto uns embarcaram em Paço de Arcos e depois no Cais do Sodré, onde um guarda-fiscal não nos queria deixar seguir. Dissemos que era política e que não íamos roubar nada. "Vamos pintar, não se assuste!" Lá chegados, começámos a pintar aquelas letras enormes que o professor depois contou repetidamente: "As letras brancas iam aparecendo no costado do navio por magia. Era um espetáculo! Parecia que não estava lá ninguém porque só ressaltava o branco.""