Como surgiu esta associação com os queijos DOP da região centro? O que oferecem estes queijos para a confeção de um bom prato? Os queijos são sobejamente conhecidos - Rabaçal, Picante da Beira Baixa, Serra da Estrela -, são todos produtos DOP e representam muito bem o que é o nosso país. Internacionalmente os nossos queijos não têm a fama de um queijo parmesão, dos queijos franceses sobejamente conhecidos ou de um blue inglês. E uma boa divulgação faz parte das coisas, é essencial. Porque nós também temos bons produtos, são é subvalorizados. Embora eu também entenda que não são fáceis, alguns..Que cuidados requer um queijo na confeção de um prato? Para certas marcas conseguirem chegar ao mercado global não é fácil. Mas nós já temos o Serra da Estrela, temos um da Beira Baixa, temos queijos bons que bem trabalhados conseguimos pô-los a esse nível. Em relação à comida, também não é fácil. Queijos para fazer comida? Pois, é preciso ter algum cuidado. Temos de combinar bem com elementos de corte. Se formos fazer tudo com queijo não funciona. Temos de ter atenção com outros elementos que combinem e compensem esse sabor mais forte. É a mesma coisa que dizer: olha, tens aqui vinho do Porto, agora faz pratos. É preciso arranjar um fator de equilíbrio..Gosta de trabalhar queijos? Gosto. O queijo é muito versátil. Eu gosto muito de queijo, porque o queijo tanto faz pratos de sobremesa como salgados, temos é de ter atenção a esse equilíbrio..Estamos agora em fase de recuperação de quase dois anos de pandemia. Houve alguma coisa que se tenha perdido irremediavelmente nesse período? Há duas coisas, a mão-de-obra escasseia e os produtos estão caríssimos. Para ter uma ideia, andamos a comprar carabineiros a 90 euros o quilo quando custavam 50. É só um exemplo, porque reflete-se em todos os produtos. Não é só nos chips dos automóveis, na restauração também se sente muito a escassez de matéria-prima. Isto vai ser assim, com aumento da inflação. Na restauração não sei como vai ser. Os produtos estão todos a subir de preço e se acompanhar a subida de preços não sei como vai ser, ninguém vem aos restaurantes..Aproveitou a pandemia para renovar o processo criativo, pensar em novos pratos? Sim, aproveitei para investigar muito. Fiz vídeos para as pessoas com receitas tradicionais. Olhe, há uma coisa que não me fez a pandemia, que foi ficar ébrio para não trabalhar. Se calhar há muitas pessoas que estão a precisar de ser chamadas à atenção, porque a pandemia não veio para deixarmos de trabalhar. Serve é para refletirmos e trabalharmos ainda melhor..O chef Rui Paula já disse em algumas entrevistas que aquele que iria ser o seu ano (2020), depois de conquistada a segunda estrela Michelin na Casa de Chá da Boa Nova, ficou estragado ou condicionado devido à pandemia. Que projetos é que tiveram de ficar para trás? Não ficou nenhum projeto para trás. Eu já tinha tomado a opção, mesmo antes da pandemia, de não abrir mais restaurantes e dedicar-me aos meus. Quando muito uma consultoria ou outra, não muitas também. Mas também aproveito esta fase para dizer que se me queixei antes, nas fases mais complicadas da pandemia, agora também digo que ninguém se pode queixar..Perdoando a comparação, mas quer dizer que a restauração já está como o trânsito, já tem mais horas de ponta do que na pré-pandemia? Já está ao nível de 2019. Para quem trabalha bem, para quem conseguiu aguentar, não há problema. Já está aos níveis de 2019 ou melhor. Por exemplo, nós já estamos em novembro e não estamos a ter época baixa, praticamente. Em todos os meus restaurantes é o que está a acontecer..Portanto, o ritmo de recuperação está melhor do que esperava? Sim... Agora, qual é o problema que vamos ter no futuro e já estamos a ter? Mão-de-obra qualificada. Isso vai ser um grave problema, mas grave mesmo. Muitas pessoas saíram da restauração, outras estão com subsídios, há muitas baixas médicas, enfim... eu antevejo graves problemas na mão-de-obra qualificada. Ou as pessoas atinam da cabeça e começam a perceber que têm de trabalhar - e não é só na restauração, porque na construção está igual e há vários setores com esta dificuldade - ou então tem de vir de fora mão-de-obra qualificada. É o que acho que vai ter de acontecer. Já estamos nessa fase. Eu aqui ainda não, mas sei de sítios em que já está a chegar a esse nível, porque isto está a ser muito, muito problemático..Também nunca escondeu que ambiciona a terceira estrela Michelin... Ai não, nunca escondo isso [risos]....Temos agora em dezembro a gala, está à espera que a terceira estrela chegue neste ano? Não....Mas já tem alguma informação privilegiada? Não, não tenho, mas não estou a contar. Estamos é a trabalhar muito bem a segunda, estamos com uma consistência muito boa, tanto a nível de clientes como a nível de serviços que prestamos. Proporcionamos aos clientes uma cozinha diferente, com ADN, com serviço bom, isso estamos a fazer bem. Ou seja, estamos a cimentar a segunda para vir a terceira. Seja agora seja um dia..Conceptualmente, qual é a diferença entre trabalhar para uma segunda estrela Michelin ou para uma terceira? O que é que o chef Rui Paula sente que tem de dar mais? Cada vez uma cozinha mais vincada, mais nossa, só nossa, que se diga assim: a Casa de Chá é diferente dos outros, para o bem ou para o mal. Há que ter autenticidade. Trabalhar muito bem o produto, trabalhar cada vez mais a frescura do produto, a naturalidade do produto e não deixando com isso de apresentar pratos bonitos. E apostar em coisas fora da caixa, com apresentações diferentes..É nisso que está a trabalhar nesta altura, nessas apresentações? Estamos, estamos. E para janeiro também já temos coisas a andar..Vamos ter novidades na Casa de Chá da Boa Nova, em janeiro? Vamos, vamos....Quer desvendar alguma coisa? Ainda não posso... Dentro do nosso conceito dos Descobrimentos e da Navegação, que é o conceito da Casa de Chá: peixe e marisco. Mas muito baseado em ir a origens distintas, como o Brasil, a Ásia... estamos a trabalhar muito bem esse conceito e cada vez mais, com mais um pouco de história, ir buscar coisas antigas..Origens novas também dentro dessa rota? Sim, ir mais a fundo nesse conceito..A sua cozinha é uma cozinha de memória. Porquê? A principal fonte de inspiração é a memória. Memória de sabores antigos - de uma tia, de uma avó, fosse quem fosse -, mas não é só isso. A memória é trabalhar noutras cozinhas, como eu trabalhei noutras cozinhas fora, a memória são paisagens, a memória é muita leitura, investigar, ver o que pode servir de inspiração... não é copiar, é inspirar-nos para aplicar numa boa ideia o nosso cunho pessoal, o nosso ADN..E dos tempos difíceis de adolescência e juventude, da vida no seminário aos períodos a lavar pratos em barcos, que memórias aproveita para aplicar nos dias de hoje? Espírito de sacrifício, resiliência, dificuldade, não desistir, ser empreendedor, perceber porque é que as pessoas crescem. É mais por aí. Todas as dificuldades servem para isso..E há algum sabor ou algum ingrediente especial que mantenha desde os primeiros tempos? Ui, há tantos. De peixes há muitos, de mariscos muitos....Qual aquele a que recorre sempre? O lavagante, a ostra, o camarão da costa... o sabor a mar..Qual o prato que sabe que nunca o vai deixar ficar mal? Olhe, um, por exemplo, que já tenho há muito tempo: o atum-ostra. Uma delícia, da barriga [do atum]. Sei lá... o lavagante nunca me deixa ficar mal. O cheiro a iodo, os percebes... Isso nunca me deixa ficar mal. Entretanto, nas carnes, a alheira, que temos um produto nosso, bem trabalhado, que conseguimos até pô-lo delicado se a alheira for boa..São reminiscências de Trás-os-Montes ainda? São... o porco, a matança do porco, tenho isso na memória, muito mais do que as carnes de vitela, por exemplo. Tudo o que é do porco, bem aproveitado. Vivenciei várias vezes a matança do porco em Trás-os-Montes..E qual o prato mais difícil, aquele que nunca se atreveu a fazer?.Não existe. É uma questão de opção. Eu tive um, que era a nossa lula-chanel, que disse que era impossível de fazer. Demorei seis meses, mas consegui. Por isso, impossível não há. Se a gente quiser mesmo, faz. Agora, pode ou não ser rentável..E a lula-chanel foi? A lula-chanel está dentro da rentabilidade. É caro, há pratos com custo de produção mais barato, mas consegui, não é nada transcendente..E se for em casa, o que faz? Ainda cozinha para si? Comida caseirinha. Comida tradicional bem feita. Olhe, gosto de assados. De peixe, por exemplo, um goraz assado no forno é uma delícia e cada vez se vê menos. Adoro cabrito, pequenino, de 4,5 quilos: faço um recheio, com uma batatinha e um arroz de costelas. Portanto, isso não há problema em casa. O que falta às vezes é tempo. No arroz de cabrito, eu faço o arroz com as costelas e depois as pás e as pernas da frente assadas no forno. Esse prato demora três horas e meia a fazer..Tem de ser para aqueles almoços de família ao domingo... Muito bem, é exatamente isso. Só aí é que dá. Tem de se entrar na cozinha às 10h00 para estar a sair para a mesa à uma da tarde..E ainda consegue ter esse tempo? Consigo. Ainda há uns dias fiz, com os meus pais..E a que restaurante de outro chef português gosta de ir? Ao Alma. Em Lisboa. Para não ser tudo cá em cima. E para valer a viagem [riso]. Além de a comida ser boa, gosto muito do chef [Henrique Sá Pessoa]. Mas não é por ser amigo que estou a dizer isto. Esforça-se pelo sabor, não meter muitas coisas no prato, que é como eu. É uma linha diferente da minha, mas é uma comida de que eu gosto..rui.frias@dn.pt