"A tourada não é um espetáculo violento. É ético, artístico, formativo e pedagógico. É o inverso de um espetáculo de violência.".Hélder Milheiro, porta-voz da Prótoiro, Federação Portuguesa de Tauromaquia, responde assim à pergunta do DN sobre a natureza dos espetáculos taurinos que, de acordo com a votação desta quarta-feira no Parlamento, passarão em 2020 a cobrar o mesmo tipo de IVA dos pornográficos. Isto depois de no Orçamento do Estado de 2019 se ter assistido ao movimento inverso, com a taxa das touradas a descer de 13% para 6%, à imagem da dos festivais de música - e contra a vontade do governo, que queria a subida para a taxa máxima e foi contrariado pelo voto contra de 40 deputados do PS..Os 40 deputados que agora, apesar dos protestos, acataram a disciplina de voto imposta pela direção da bancada e votaram favoravelmente o aumento, juntando-se ao BE e ao PAN naquilo que a ministra da Cultura, Graça Fonseca, definiu na discussão de 2018 como "uma questão civilizacional"..Não foi exatamente com essas palavras, mas também o Conselho de Estado francês, correspondente ao nosso Supremo Tribunal Administrativo, negou em fevereiro de 2019 a baixa do IVA das touradas de morte para 5,5% (a taxa dos espetáculos teatrais, poéticos e de variedades, concertos e circo), julgando um recurso interposto por um grande empresário do setor..Os argumentos usados pelo mais alto tribunal de França - país onde a corrida foi em 2011 inscrita no património cultural imaterial da França, sendo em 2015 dele retirada por decisão do Tribunal da Relação de Paris - para negar a pretensão são a singularidade do espetáculo, ligado ao tema central do frente-a-frente do homem e do animal e do ritual final da morte deste último. Já em Espanha o IVA das corridas de touros está desde 2018 nos 10%, a taxa intermédia, depois de ter em 2012 subido de 18% para 21%, a taxa máxima..Descida de IVA em 2019 não teve efeito notório na afluência de público.Em Portugal, como é sabido, não há touros de morte - a não ser na exceção de Barrancos, permitida desde 2002 pela aprovação de um projeto de lei conjunto de PSD, CDS e PCP. Também então o PS teve disciplina de voto - com cinco deputados a serem dela isentados - e o BE votou contra, assim como os Verdes, dois parlamentares do CDS-PP e oito do PSD..18 anos depois da vitória barranquenha, muito mudou no panorama da tauromaquia. Se em 2000 a Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC) contabilizou 360 touradas e afins no território continental, e em 1999 estas tiveram mais de 703 mil espetadores, em 2019 os números correspondentes foram de 174 e 383 938, respetivamente..Apesar de nos últimos dois anos se ter verificado um ligeiro aumento de espetadores - 12% de 2017 para 2018 e 1,3% de 2018 para 2019 -, certo é que nos últimos dez anos a descida foi de 42%. Muito semelhante à queda no número de espetáculos no mesmo período - 43%, de 313 em 2009 para 174 em 2019, tendo-se verificado só neste último ano uma quebra no ciclo constante de descida, com um aumento de 0,5% (de 173 para 174)..O desacerto entre a queda contínua no número de espetáculos e o ligeiro aumento no dos espetadores explica-se com o aumento da média destes por espetáculo: em 2017 foram 2000 e em 2019 subiram para 2207, a segunda melhor média da década, após os 2260 de 2010..Atendendo a que o IVA desceu sete pontos percentuais de 2018 para 2019, porém, a diferença entre o número de espetadores entre estes dois anos não parece corresponder à diminuição no preço: o aumento de espetadores foi bem maior, como se constata, de 2017 para 2018. Hélder Milheiro justifica: "O IVA desceu numa altura de recuperação económica, e estas alterações levam tempo a ter efeito.".Curiosamente, em Espanha, apesar da descida do IVA de 21% para 10%, em 2018 houve, de acordo com as estatísticas de assuntos taurinos do Ministério da Cultura e Desporto, uma ligeira diminuição no número de espetadores das corridas nesse ano: foram 369, menos 4,7% do que no ano anterior: no total, os "festejos taurinos" foram 1521, menos 2,1% do que em 2017. Um número apontado como "mínimo histórico" nos últimos 15 anos em Espanha - desde que começaram a coligir-se estatísticas para o setor, em 2003 (quando se registaram 1947 "festejos" desse tipo). O pico ocorreu em 2007, com 3651; desde então tem havido uma descida quase contínua, correspondendo a menos 58,3% nesses 11 anos. A descida no número de corridas entre 2007 e 2018 foi de 61,3%..Um terço dos inquiridos em sondagem diz-se "aficionado".Em comunicado, nesta quarta-feira, a Prótoiro anuncia que "irá pedir ao Presidente da República que vete este diploma discriminatório de subida da taxa do IVA na tauromaquia, diferenciando-a do IVA das restantes áreas culturais". Considerando que "está nas mãos do Presidente da República, enquanto garante da Constituição, fazer que esta inconstitucionalidade seja eliminada e os direitos e liberdades dos portugueses sejam salvaguardados", assevera que "está a preparar várias medias e este é o início de uma batalha que só pode ter como desfecho a eliminação desta ilegalidade que envergonha a democracia.".Se quiser vetar este aumento de IVA, Marcelo Rebelo de Sousa terá de vetar todo o Orçamento do Estado, mas o Parlamento pode fazê-lo passar reconfirmando-o, sem necessidade de maioria qualificada..A Prótoiro porém está a dar tudo por tudo: na véspera da votação da subida do IVA das touradas no Parlamento, tinha tornado pública uma sondagem sobre a forma como os portugueses se relacionam com as touradas, da qual se retira que cerca de um terço dos inquiridos se afirmam "aficionados". Já 33,7% consideram o tema indiferente e 22,7% não gostam mas dizem respeitar a liberdade de escolha. Só 11% se assumem contra. Este número sobe para 15% nos jovens dos 15 aos 30, com 29% a afetar indiferença e 24% a não gostar, e 30% clamando-se aficionados..À pergunta "Já assistiu ou costuma assistir a touradas ao vivo?", 50,5% responderam sim e 43,3% não. Uma diferença ainda assim muito grande em relação aos números reais de espetadores fornecidos pela IGAC. E mesmo em relação aos apresentados pela Prótoiro, distintos dos da IGAC. Assim, a federação diz ter registado em 2019 mais espetáculos tauromáquicos - 207 - e mais espetadores, 469 mil, apontando uma subida de 7% face aos 440 mil que imputa a 2018. A diferença de contabilidade é explicada por Hélder Milheiro com o facto de a IGAC "fazer um relatório administrativo de atividade", só se referindo ao território continental (há touradas nos Açores) e por esta não classificar como tauromáquicos certos tipos de espetáculos..A federação não coligiu ainda números relativos ao valor que as touradas representam mas crê, segundo Milheiro, que o aumento de imposto relativo ao aumento de 17 pontos percentuais no IVA andará no milhão e meio a dois milhões de euros. Em 2018 calculou-se em 600 mil euros a perda para o Orçamento do Estado relativa à descida de sete pontos percentuais em 2019; os números parecem não bater certo..À batalha perdida no IVA junta-se o anúncio, em 2019, pelo diretor de programas da RTP, José Fragoso, de que o número de touradas transmitidas pelo canal público deverá descer para duas em 2020 - em 2019 transmitiu três - e que "depois vamos ver"..Em 2018, António Costa, em resposta a uma carta aberta de Manuel Alegre a insurgir-se contra o aumento do IVA nas touradas, escreveu: "Choca-me que o serviço público de televisão transmita touradas. Mas não me ocorre proibir a sua transmissão.".A questão da transmissão de touradas na TV - a TVI também o faz e são consideradas programas com bastante audiência - tem sido periodicamente suscitada. Em 2008, o tribunal de Lisboa proibiu a RTP de transmitir uma tourada antes das 22.30, considerando tratar-se de um programa "violento e suscetível de influenciar negativamente crianças e adolescentes". A decisão surgiu na sequência de uma providência cautelar interposta pela Associação Animal, visando restringir a exibição televisiva de touradas pela RTP. O tribunal ordenou que a emissão só acontecesse entre as 22.30 e as 06.00 e acompanhada de um identificativo visual permanente, sob pena de a estação ter de pagar 15 mil euros e incorrer em crime de desobediência qualificada. Esta decisão viria, no âmbito da ação principal a que a providência cautelar estava associada, a ser considerada sem provimento; as touradas têm vindo a ser transmitidas sem indicativo e antes das 22.30, mesmo se geralmente pouco antes..Em 2016 a Entidade Reguladora para a Comunicação Social considerou "admissível a transmissão de espetáculos tauromáquicos, em horário não protegido, atento ao facto de estes (espetáculos) constituírem parte integrante do património cultural português, bem como à circunstância de o legislador classificar os mesmos para maiores de 6 anos.".ONU recomenda aumento da idade mínima do público para 18 anos.A questão da idade mínima para assistir a este tipo de espetáculos tem também estado em discussão nos últimos anos. Depois de em 2014 o Comité dos Direitos da Criança da ONU ter recomendado que Portugal aumentasse a idade mínima para 6 anos, em 2019, em nova análise, alterou o conselho, estabelecendo "a idade mínima para participação e assistência em touradas e largadas de touros, inclusive em escolas de toureio, em 18 anos, sem exceção", alertando para a necessidade de sensibilizar "os funcionários do Estado, a imprensa e a população em geral sobre efeitos negativos nas crianças, inclusive como espetadores, da violência associada às touradas e largadas.".Recomendações que os aficionados em geral e a Prótoiro em particular consideram "totalmente infundadas", asseverando não existirem estudos que comprovem os efeitos negativos citados..Seja como for, a onda antitouradas tem crescido. Em 2018 foram quatro as regiões de Espanha onde não se celebrou qualquer corrida: Catalunha, onde foram proibidas desde 2012 (em 2016 o Tribunal Constitucional espanhol anulou a decisão, considerando que invadia as competências do Estado, ou seja, do governo central), Canárias, em cujo território não sucedem desde 1984, Ceuta (não há praça de touros), e Baleares, aqui pela primeira vez desde 2003..Em Portugal, dois municípios, Viana do Castelo e Póvoa do Varzim, declararam-se antitouradas. Em Viana do Castelo o último espetáculo tauromáquico ocorreu em 2014, cinco anos após a autarquia ter aprovado, por proposta da maioria socialista então liderada por Defensor de Moura, uma declaração afirmando o município "antitouradas" e anunciando que não autorizaria qualquer evento do tipo desde que a decisão dependesse dela. A partir de 2012 só ocorreram touradas no município porque o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga aceita as providências cautelares apresentadas pelos aficionados e promotores para suspender os indeferimentos municipais. Mas nos últimos dois anos, de acordo com a câmara, não tem havido pedidos de licenciamento..Na Póvoa de Varzim, onde em 2018, de acordo com o relatório da IGAC relativo a esse ano, tiveram lugar três touradas, somando mais de dez mil espetadores, os órgãos municipais decidiram que a partir de 1 de janeiro de 2019 estas seriam proibidas no município. Uma decisão de setembro último do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, em resposta a uma ação legal da Prótoiro, do Clube Taurino Povoense e da associação Aplaudir, caucionou a decisão da câmara de impedir, "por razões de segurança", a realização de três touradas, mas considerou inconstitucional a proibição geral destes espetáculos - que não era o objeto da ação..NOTA: texto alterado às 16.50 de sexta-feira 7 de fevereiro, para retificar duas informações relativas à proibição de touradas na Catalunha - esta, que efetivamente vigorou a partir de 2012, foi anulada em 2016 pelo Tribunal Cosntitucional espanhol - e à decisão do Tribunal de Lisboa que deu provimento a uma providência cautelar da associação Animal, decretando que a RTP só podia transmitir touradas a partir das 22.30 e com aviso: tal obrigação seria anulada na ação principal.