Itália. Depois da "guerra", o pequeno milagre

Aos poucos, a normalidade chega ao primeiro país europeu a ser massacrado pela covid-19 e até já se recuperou uma tradição centenária para beber o Aperol Spritz. Os turistas são poucos, mas as imagens que chegam de Itália estão longe daquelas, dolorosas, de colunas militares com caixões.
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"Estes foram os meses mais difíceis na história do país desde a Segunda Guerra Mundial." As palavras do ministro da Saúde de Itália, Roberto Speranza, são duras, mas certeiras - não haveria certamente melhor palavra do que "guerra" para ilustrar o que a Itália viveu entre março e maio na luta contra a pandemia de covid-19. As imagens que correram mundo não foram as de paredes esburacadas por metralhadoras, mas foram igualmente pujantes, dolorosas: filas de camiões militares carregados de caixões a atravessar as ruas desertas de Bérgamo, no norte do país. As imagens captadas nos hospitais davam conta do colapso dos serviços de saúde e da impotência dos profissionais de saúde na luta contra um inimigo invisível, que tirava a vida sobretudo aos avós italianos.

O novo coronavírus passou da China para Itália como se tivesse saltado de um trampolim: de repente, a doença desconhecida instalava-se na Europa e fazia mortos e mais mortos todos os dias. A 27 de março, uma Itália já fechada em casa chorou a morte de quase mil pessoas em apenas 24 horas. Mas, de repente, as imagens dos caixões italianos eram substituídas pelas das valas comuns em Nova Iorque, onde a pandemia - declarada a 11 de março - tinha chegado em força. Os Estados Unidos são, aliás, o país do mundo com mais mortes e infetados - mais de cinco milhões de casos e mais de 166 mil vítimas mortais. O que dirão agora os italianos das palavras do vice-presidente norte-americano, Mike Pence, quando afirmou, no auge da tragédia, que Itália era o país que ninguém queria ser?

As imagens são agora outras: gente nas ruas, nas esplanadas, alguns (muito poucos) turistas para um país habituado a enchentes. Itália e os italianos esforçam-se para recuperar a normalidade e os números de mortos e infetados permitem que, passados cerca de quatro meses, se fale num pequeno milagre. Ao contrário do que acontece, por exemplo, em Espanha, outro dos países europeus massacrados pela covid-19 e que nos últimos dias tem registado na ordem das três mil novas infeções diárias. Desde o início desta crise sanitária, Itália regista 251 237 casos, 412 nas últimas 24 horas, um número superior ao do dia anterior. Com os seis óbitos anunciados nesta terça-feira, o total de vítimas mortais é agora de 35 215.

Ciente da fragilidade da situação, o governo italiano decidiu, contudo, no final de julho, estender o estado de emergência até 15 de outubro para facilitar a aplicação de medidas na luta contra a pandemia. "Infelizmente, a pandemia ainda não acabou completamente, ainda que os seus efeitos estejam mais contidos e geograficamente limitados", declarou o chefe do governo, Giuseppe Conte, no dia em que a decisão foi aprovada pelos deputados.

Vai um Aperol Spritz?

Verão e Itália rimam com praças, pracinhas e esplanadas. Com convívio com os amigos e com a família, com restaurantes e boa comida. E os italianos têm tentado recuperar essa equação que faz parte das suas vidas. Longe dos tempos anteriores à pandemia, mas ainda assim dando passos largos para que isso aconteça. Apesar do distanciamento social imposto, do uso obrigatório de máscara, as agências internacionais mostram os italianos na praia, os turistas em filas para entrar em museus ou a registar para a posteridade a sua imagem junto à Fontana di Trevi e na Praça de Espanha, em Roma (nem todos com máscara). A pandemia parece estar controlada naquele que foi o primeiro país europeu a sofrer com o novo coronavírus.

Recuperar a normalidade possível significa também recuperar os velhos hábitos. Tão, tão italianos como o Aperol Spritz (a bebida alaranjada) ao fim do dia na esplanada. E, como são engenhosos, os italianos arranjaram soluções para evitar o contacto físico, ao mesmo tempo que recuperam uma tradição secular, as buchette del vino. As janelas do vinho são pequenas aberturas nas paredes por onde os comerciantes de vinho vendiam os néctares. Foram criadas em 1600 quando o país era assolado pela peste negra.

Segundo a associação Buchette del Vino, existem cerca de 150 janelas destas na Toscana, mais de uma centena no centro histórico de Florença. E se estavam em desuso - algumas foram mesmo "apagadas" -, agora houve a oportunidade de bares, cafés e geladarias as recuperaram com o mesmo propósito de há quatro séculos: alguém poder saborear uma bebida, ao mesmo tempo que mantém a distância física de segurança. Agora, além do vinho, do spritz e do café, estão a ser servidos outros produtos, desde sanduíches a gelados.

A pandemia deu provas de que os italianos sabem contornar as situações, o que lhes valeu serem apelidados de irresponsáveis. Quem não se lembra da partilha de fotos de italianos na rua com um cão de louça, durante a quarentena obrigatória? Se era permitido sair à rua com o cão, não interessava se era de louça ou um ser vivo...

Os italianos gostam de desobedecer a regras, mas estão a conquistar um regresso à normalidade aos poucos. Segundo o jornalista e escritor Beppe Severgnini, foi a própria "italianidade" do povo que permitiu que isso acontecesse. "Nós superámos porque encontrámos outros recursos que sempre estiveram lá: realismo, inventividade, famílias extensas, solidariedade e memórias", disse à CNN. "Na Itália, as regras não são obedecidas, ou desobedecidas, como noutros sítios. Achamos que é um insulto à nossa inteligência cumprir um regulamento sem questioná-lo primeiro."

Por isso, quando o primeiro-ministro estendeu a quarentena a todo país, além das restrições de viagens e ajuntamentos públicos, os italianos acataram.

Severgnini explica porquê: "Com a covid-19, decidimos que o bloqueio fazia sentido, então não havia necessidade de aplicá-lo."

O dia mais negro: quase mil mortes

27 de março é um dia que os italianos não esquecem, o ponto mais elevado do gráfico que contabiliza o número diário de mortes. Quase mil pessoas morreram em apenas 24 horas. O dia seguinte foi igualmente negro, mas os óbitos desceram de 969 para 887 e mantiveram-se acima, ou próximos, dos 700 até 4 de abril. A 28 de maio, depois dos números trágicos dos últimos meses, pela primeira vez desde 10 de março (dia do confinamento total do país), registam-se menos de cem vítimas mortais. Aos poucos, a situação sanitária foi melhorando, mas a economia foi perdendo, com o desemprego a subir e as receitas para um país que vive muito do turismo a descerem em catadupa. Uma situação em tudo semelhante à portuguesa ou à espanhola.

O produto interno bruto (PIB) da Itália caiu 17,3% no segundo trimestre deste ano, face ao mesmo período de 2019, uma queda sem precedentes devido à pandemia de covid-19.

Roma, Florença, Milão, Turim e Veneza representam um terço das entradas de turistas no país. Melhor, representavam. Porque com o novo coronavírus até cidades como Veneza, que se queixavam do excesso de turistas, estão praticamente às moscas se comparado com outros tempos. O pontapé na economia do país é brutal: só estas cidades perderam neste ano 34 milhões de visitantes, o que equivale a uma diminuição de receitas na ordem dos 7600 milhões de euros. Desses, 4900 milhões referem-se a alojamento, restaurantes, negócios e serviços.

Veneza, uma das cidades mais visitadas do mundo e que recebia quase 75 mil pessoas por dia, espera que o número de turistas caia para 13,2 milhões, perdendo três mil milhões em receitas, refere o estudo da associação de comerciantes italiana Confersercenti.

A cidade receberá, contudo, a 77.ª edição do Festival de Cinema de Veneza, de 2 a 12 de setembro. O evento foi apresentado como o primeiro a decorrer nos moldes tradicionais depois de meses de paralisação da atividade cinematográfica por causa da pandemia que levou muitos festivais a adiamentos, cancelamentos e exibições online.

Terão as imagens dos caixões empilhados em igrejas ou a serem transportados em coluna militar levado os italianos a perceber que a situação era muito séria? Que era preciso recolher para que o problema não ficasse descontrolado? Que papel teve o medo neste pequeno milagre italiano? O ministro da Saúde, Roberto Speranza, pensa que "Itália superou a tempestade". Mas também faz questão de alertar que a situação internacional o preocupa e que não se pode descansar.

O jornalista e escritor Beppe Severgnini, que morou nos Estados Unidos, acredita que o medo teve um papel importante em tudo o que se tem passado, afirma à CNN. "O medo pode ser uma forma de sabedoria. Ousadia, uma demonstração de descuido." E acrescentou: "Ah, e não temos Donald Trump, o que ajuda."

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