"As janelas tinham uns corações. É por isso que era conhecido como o bairro dos corações. Era bom viver aqui? Era maravilhoso." Maria Albertina Simões está no átrio do prédio onde mora, um dos poucos que restam neste bairro de Oeiras construído há sete décadas junto à linha de comboio que liga Cascais a Lisboa, enquanto recorda o que era a vida nesta zona da cidade que agora procura regenerar-se. Segundo o plano diretor municipal aprovado em dezembro de 1991 - que a câmara não confirmou ao DN se ainda se mantém -, os edifícios antigos e em mau estado de conservação vão dar lugar a prédios, comércio, zonas verdes e pedonais..Maria Simões (85 anos) tem ao lado a irmã (Maria das Dores, 88) e a sobrinha que as acompanha neste final de manhã na ida ao restaurante onde vão almoçar. Um ritual das duas irmãs, tal como a visita matinal ao café a que se junta, por vezes, umas compras, "como a ida à peixaria"..As irmãs vivem agora juntas e juntas vão sair do bairro onde moraram toda a vida - os três anos que Maria das Dores esteve fora não pesam nesta história - para casas cedidas pela Câmara de Oeiras no processo de realojamento das pessoas que ainda ocupam os quatro edifícios que restam no Bairro dos Corações, localizado, como é óbvio, na Rua dos Corações..Daquilo que terá sido uma zona "muito bonita, com um jardim aqui no meio", como recorda Maria Simões, nada resta além das memórias, principalmente destas duas senhoras que ali vivem há décadas..Agora, quem passar nesta zona de Oeiras encontra trabalhos de terraplanagem, edifícios com algumas áreas tapadas por paredes de tijolo e alguns montes de entulho das casas que já foram deitadas abaixo. Destino que também já tiveram as oficinas da autarquia que estão ao lado e cujo terreno serve de parque de estacionamento para veículos da câmara que ali ficam ou outros que utilizam o posto de abastecimento interno dos serviços camarários liderados por Isaltino de Morais..Há, por isso, muito pó, praticamente nenhum alcatrão - "os senhores podiam tirar fotografias aos buracos", pedem as irmãs enquanto caminham de braço dado com Lurdes Ramos, a filha de Maria das Dores, que, com a irmã, vai repartindo o apoio às duas idosas. "Tinha 15 anos quando vim para aqui morar, tenho agora 85. Isto era muito bom. Brincávamos, íamos para a escola. Éramos amigos uns dos outros e nos santos populares fazíamos aqui uma grande festa", recorda Maria Albertina Simões..Tanques da roupa e obras militares.A conversa no átrio do edifício de dois andares onde moram leva ao desfiar de recordações das sete décadas passadas no bairro que ao início estava "rodeado de campo, só havia uns prédios do J. Pimenta [do outro lado da linha de comboio mais perto da praia]", como explicam. Uma das memórias tem a poucos metros um edifício que as remete para esse outro tempo. "Aquela casinha que veem ali [térrea pintada de branco com o símbolo da câmara e plásticos a tapar janelas] era onde estavam os tanques para lavarmos a roupa. Íamos com os alguidares à cabeça", conta. "Isto era muito bonito. Toda a gente era unida, estava cheio, tinha muitas raparigas que depois se casaram e foram-se embora", acrescenta a mais nova das irmãs e a mais faladora..Tal como a irmã Maria das Dores, antes de chegar à Rua dos Corações, Maria Albertina morava em Paços de Arcos numas "casas baixinhas, mas boas", construídas no terreno que acabou por ser necessário para o mercado municipal..Foi nessa altura que surgiu a necessidade de as realojar noutro local e aí surgiu a oportunidade de criar o bairro cujas casas foram construídas "pelos militares", como contam ao DN. "Este terreno não era da câmara, era de uma senhora inglesa. Mas ficou tudo tão bonito, no meio tinha um jardim, com árvores, relva...", recorda Maria das Dores..O cordel na porta.Atualmente, o bairro que tinha prédios do número 1 ao 8 tem quatro edifícios e não estão ocupados na totalidade. As duas irmãs vivem num andar de uma dessas casas, em frente há um andar ocupado por uma pessoa, no imóvel ao lado vive uma família e duas irmãs, e um outro andar é ocupado por pessoas a quem a autarquia dá abrigo. Ou seja, no total há cerca de uma dezena de pessoas a morar em casas degradadas, cercadas de um piso de terra e de obras para demolir o que ainda está de pé..Todos aguardam o realojamento por parte da autarquia, o que tem vindo a acontecer - aliás, as irmãs Maria e Albertina já têm casas atribuídas. "Uma casa muito bonita, já lá tenho as mobílias. Não as minhas, que arderam quando vieram para aqui [e aponta para o local onde morava num rés-do-chão] morar uns rapazes que acabaram por provocar um incêndio na casa", conta Maria Albertina..Em breve vai para um andar numa zona próxima, tal como a irmã mais velha, mas até esse dia vive aqui nesta casa que tem à vista o impacto do passar dos anos e da pouca ou nenhuma requalificação..Está na hora de almoço, portanto saem para a rua fechando a porta com um cordel e não à chave. Perante a estranheza e a pergunta sobre a segurança de tal situação, a filha Lurdes responde: "Elas não têm receio de morar aqui sozinhas. Quando eu ou a minha irmã vamos embora retiramos o cordel da porta e não entra ninguém [no prédio] e elas fecham a porta de casa. O cordel serve para o carteiro entrar e deixar as cartas.".Da câmara dizem não ter razão de queixa. "Quando telefono para lá e consigo falar com alguém sou bem atendida. Só no ano passado é que pedi para limparem as ervas e as árvores e acabou por ser ela [Lurdes ponta para a mãe Maria das Dores] a pagar o trabalho, pois não apareceu ninguém da câmara. Neste ano já meti o requerimento outra vez", frisa..Dos vizinhos também não têm muito a dizer. Conhecem-se, falam-se, mas ao DN não acrescentam mais. Na realidade, os próprios também não. Dos que estavam em casa, um deles, Rui Santos de seu nome, apenas soube dizer que vive no Bairro dos Corações "há dois anos" e que está "desempregado". Disse saber que ia ter de sair dali, mas não faz ideia para onde..Outra das pessoas que vivem num dos imóveis preferiu não dar grandes explicações sobre a vida nesta zona de Oeiras que está bem perto da marginal, mas que não tem vista para o mar devido aos prédios construídos do lado de lá da linha, preferindo tratar do quintal e da sua roupa..Ficamos assim com as recordações das idosas que viveram 70 anos no Bairro dos Corações, de onde em breve vão sair, deixando para trás as recordações de uma vida que o projeto que a câmara terá para ali - e cujos pormenores não adiantou ao DN - certamente não irá conservar.