Por mais de uma década, a rainha Isabel II e Margaret Thatcher, a primeira mulher primeira-ministra do Reino Unido, encontraram-se todas as semanas para falar do que se passava no reino. "Quando descobri que tinham nascido com seis meses de diferença foi realmente uma revelação para mim. São como gémeas sem o serem", afirmou Peter Morgan, autor da série The Crown. A quarta temporada, disponível a partir de 15 de novembro na plataforma Netflix, tratará das relações entre ambas.."A perceção pública, mesmo que não seja realidade, era de que as audiências [entre ambas] eram difíceis", nota o historiador britânico Neill Lochery, que vive em Portugal e tem escrito sobre as relações luso-britânicas (Portugal - Saído das Sombras da Revolução de 1974 até ao Presente e, mais recentemente, Porto - A Entrada para o Mundo). "Quando Thatcher é eleita, em 1979, é como se terminasse o consenso pós-guerra que existia antes entre conservadores e trabalhistas.".Tudo a afasta da rainha e do círculo real. Margaret Thatcher nasceu a 13 de outubro de 1925 (e morreu a 8 de abril de 2013), é filha do dono de uma mercearia de Grantham. Isabel II nasceu a 21 de abril de 1926, filha do rei George VI, que herda o trono depois da abdicação do irmão, Eduardo VIII..A rainha cultiva distância e formalidade com todos os primeiros-ministros. Num artigo da publicação History Extra, o historiador britânico Dominic Sandbrook divide os ocupantes do cargo em duas categorias: os que pertencem a classes sociais elevadas, Tories à moda antiga (e Winston Churchill o seu melhor exemplo), e primeiros-ministros do Partido Trabalhista como Harold Wilson ou James Callaghan, patrióticos e socialmente conservadores. Thatcher está fora de ambos os grupos..Não pertence ao universo masculino e aristocrata dos Tories. Razões? "É uma mistura de quebra de consenso pós-guerra e ataque aos privilégios", salienta Neill Lochery, acrescentando ainda "a questão do género". "Não estão à vontade em terem uma mulher primeira-ministra, para mais sendo do Partido Conservador..Margaret Thatcher via-se como uma radical que pretendia modernizar o Reino Unido. Escreve Dominic Sandbrook: "Ela prometeu ultrapassar o statu quo paternalista que dominava a vida política e económica da Grã-Bretanha nos 40 anos anteriores - um consenso de que a própria rainha, com os seus monólogos anuais sobre dever e serviço, se tinha tornado símbolo", segundo Dominic Sandbrook. Thatcher não representava as classes altas nem seguia o exemplo daqueles que antes dela ocuparam Downing Street. Descrevia-se antes como "normal, direta, provinciana". "Olhava o sistema como um inimigo", refere o historiador..Impõe-se a pergunta: com tantos ventos contra, como chega à liderança dos Tories? Com o apoio de Keith Joseph, considerado o arquiteto das suas políticas públicas e do chamado thatcherismo. "Por alguma razão ele decidiu não avançar e ela foi empurrada para a frente." E quando é eleita dentro do seu próprio partido, Neill Lochery vê esta vitória mais como um cartão vermelho à governação do antecessor de Thatcher, Edward Heath. Mais: "Esta foi uma das primeiras vezes em que houve eleições diretas no Partido Conservador para o líder do partido", explica. Até então, os líderes eram escolhidos nos bastidores, como se diz na expressão inglesa que o historiador usa: em smoke-filled rooms (em salas cheias de fumo)..Thatcher, reformista, seria era um pouco o que Cavaco Silva foi em Portugal, seis anos depois, ou Ronald Reagan nos anos 1980 nos EUA, compara o historiador. E apesar desse entendimento de que manteria relações tensas com a rainha Isabel II, os documentos conhecidos desde então dizem o contrário. Afinal, segundo Lochery, "davam-se melhor do que era a perceção naquele momento"..Para tanto, e como vêm mostrando as anteriores temporadas de The Crown, contribui o estilo diplomático e reservado que a rainha Isabel II adotou. "Tem sido excecionalmente hábil a lidar com a privacidade", diz o historiador britânico ao DN e concorda José Bouza Serrano, antigo embaixador de Portugal e autor do livro As Famílias Reais dos Nossos Dias. "É um treino das pessoas reais em particular, e desta em particular, não deixam passar os sentimentos." Sabe-se da admiração por Winston Churchill, sabe-se que condecorou Margaret Thatcher e lhe deu um título - baronesa de Kesteven..Há, sim, um denominador comum entre rainha e primeira-ministra: o grande protagonismo que Thatcher ganha. "Existe o entendimento de que ela é uma figura internacional relevante, a Dama de Ferro", diz Neill Lochery. "São duas superestrelas colossais do Reino Unido do século XX. Ambas mudaram o país profundamente", resumiu Peter Morgan à Vanity Fair, explicando o seu ponto de partida para a ficção..Une-as outro detalhe: o longo reinado de Isabel II (foi coroada em 1952), a longa passagem de Margaret Thatcher pelo número 10 de Downing Street, daquele 4 de maio de 1979 - uma das imagens já divulgadas da próxima temporada de The Crown com Gillian Anderson no papel de Margaret Thatcher - a 28 de novembro de 1990, quando passou a pasta a John Major..Neill Lochery, que tinha 14 anos quando a Dama de Ferro se tornou primeira-ministra, lembra as palavras de um jovem inglês a um jornal em 1987: "Pode um homem algum dia ser primeiro-ministro?".Até junho de 1982, continua Lochery, "ninguém acreditava que Thatcher, altamente impopular, fosse reeleita". É a guerra das Falklands, em que se empenha com a mesma obstinação com que manteve posições em relação às reformas do Estado que a leva de novo a Downing Street..Depois de a Argentina ocupar as ilhas, a Grã-Bretanha envia tropas para a região, no Atlântico Sul. Após 74 dias, os argentinos rendem-se (morreram 649 militares argentinos, 255 militares britânicos e três habitantes das ilhas) e Margaret Thatcher passa a ser vista como uma "líder dominante", diz Lochery. "Começam a levá-la mais a sério.".O mandato seguinte coincide com a greve dos mineiros e uma fortíssima contestação social. "Foi a guerra do thatcherismo. Houve vários ataques à sua falta de compaixão com o desemprego", diz Neill Lochery, lembrando as palavras do conservador Harold MacMillan, antecessor de Thatcher no cargo, na Câmara dos Lordes: "Esta mulher não percebe o que se passa no norte da Grã-Bretanha.".Uma notícia de 1986 que deixa passar a ideia de que Casa Real britânica se distanciava das políticas da primeira-ministra. "O The Sunday Times escreve que conselheiros da rainha Isabel II disseram que a monarca se sentia desiludida com muitas das políticas da primeira-ministra Margaret Thatcher. O Palácio de Buckingham refuta a notícia dizendo que não tem fundamento", escreve a agência de notícias AP, difundindo a notícia por jornais de todo o mundo. Por uma vez (uma das raras vezes), galgava os portões do Palácio de Buckingham uma opinião da soberana..Não se sabe (ainda) se este será um dos momentos da quarta temporada de The Crown, mas antecipa-se o encontro de rainha e primeira-ministra nas imponentes salas de Buckingham. Charles Moore, que escreveu a biografia autorizada Margaret Thatcher: The Authorized Biograpghy - From Grantham to the Falklands (Biografia Autorizada - De Grantham às Falklands, numa tradução livre), recorda que a primeira-ministra, nervosa, se sentava na ponta da cadeira nessas reuniões semanais à terça-feira - uma postura diferente da imagem pública que cultiva..E, tão certo como o que se lê nas biografias da primeira-ministra britânica, haverá referência à vénia tantas vezes demasiado pronunciada com que brindava a rainha e que se tornou piada palaciana. Um desses detalhes que Peter Morgan não deixa escapar.