"Investiram em ventiladores, mas esqueceram-se dos médicos de família"
Há um mês que a Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) pediu uma audiência urgente à ministra da Saúde, Marta Temido. Até aí, tinham dado o benefício da dúvida, apesar de todo o trabalho que lhes caiu em cima com a covid-19. "Temos feito um esforço imenso. Os médicos de família estão exaustos, os outros profissionais também. Isto é uma preocupação para nós." Deveria ser também para quem manda, para a tutela, sobretudo no momento em que o país, à semelhança do resto da Europa, vê o número de casos ativos disparar. Até há um mês, suportaram tudo, agora querem discutir com quem manda. "Temos propostas, ideias e problemas a discutir. É estranho que não nos perguntem o que queremos, do que necessitamos e o que é preciso fazer. É triste", critica Rui Nogueira, presidente da APMGF e médico numa unidade de saúde familiar, em Coimbra. Em entrevista ao DN, este médico de família diz que o que aí vem pode ser duro, se não forem tomadas medidas já.
Tem dito que os médicos de família estão exaustos. Estão a ser esquecidos na linha da frente da covid-19?
Sim. Os médicos de família e as nossas unidades de saúde estão esquecidos há muito tempo, até mesmo antes da pandemia. Diria que há dez anos que temos um problema de esquecimento. Agora nota-se mais, muito mais, o trabalho é maior e a pressão também.
A pandemia veio mostrar as fragilidades?
Claro. Não tínhamos estrutura preparada. Não só nós, cuidados primários, ou o país, mas o mundo. Não havia preparação para responder a uma pandemia. E o que estava a acontecer antes da pandemia, devido à falta de recursos, é agora ainda mais notório. Não há unidades de saúde suficientes para responder à população, não há médicos de família, não há outros recursos.
Os utentes que se queixam de que não são atendidos, nem ao telefone, na área da Grande Lisboa, que não conseguem consultas para renovar baixas ou até para terem baixa, têm razão?
Têm, claro.
Há solução para isto?
Há, mas precisamos de ter mais capacidade para responder ao atendimento dos telefones. Estamos a fazer atendimento por telefone devido à necessidade de mantermos o distanciamento social, mas com o acompanhamento que temos de fazer dos doentes covid estamos permanentemente ao telefone. Se não é o médico são os outros profissionais, e os telefones que temos não chegam para estas necessidades, já não chegavam antes da pandemia. A questão é que não faltam só telefones, mas também profissionais para atender telefones. Tem de haver pessoas para tudo, não basta termos mais linhas de telefones.
É uma das situações em que se vê a falta de investimento de que fala?
Claro. Há anos que estamos com escassez de recursos e com ausência de um plano de investimento nas unidades de saúde de proximidade, que são essenciais e não têm visibilidade nenhuma.
"Quando falamos em cuidados primários falamos da outra ponta da linha, da ponta inicial, aquela que tem de dar resposta ao global da população e parece que ninguém pensa nisso. Investiram em ventiladores, mas não se lembraram sequer de investir em telefones ou em pessoas para os atender."
Porque diz que não têm visibilidade?
Porque andamos iludidos com os ventiladores. Toda a gente quer saber quantos há, quantos comprámos - mas também se esquecem de que os ventiladores precisam de técnicos, não trabalham sozinhos. É claro que temos de estar preocupados com os cuidados de fim de linha, tem de haver ventiladores para haver capacidade de resposta para os casos mais graves, mas quando falamos em cuidados primários falamos da outra ponta da linha, da ponta inicial, aquela que tem de dar resposta ao global da população e parece que ninguém pensa nisso. Investiram em ventiladores, mas não se lembraram sequer de investir em telefones ou em pessoas para os atender.
Isso irrita-o. Estar na frente da linha da covid e até agora não haver investimento nesta área?
Repare, a percentagem de doentes internados que precisam de cuidados intensivos é de cerca de 15%, é uma minoria. A questão é que 90% a 95% dos casos ativos que tivemos desde abril até agora são casos ligeiros, seguidos em casa e pelos médicos de família - ou seja, onde tem de haver um esforço muito grande de investimento é nos cuidados de saúde primários. A linha da frente é esta linha, rua a rua e bairro a bairro, é a linha dos cuidados primários. Quem manda não está a pensar nos mais de 25 mil casos ativos que temos nesta altura e nos noutros dois milhões de utentes, que são doentes agudos, crónicos e com outras complicações, e que todos os anos geram 30 milhões de consultas nos cuidados primários.
Diz que mais de 90% dos casos positivos com covid são acompanhados nos cuidados primários, mas ao telefone...
Às vezes, também há necessidade de ver doentes covid presencialmente, e temos áreas dedicadas para isso. Estes doentes são agendados até para não se acumularem numa sala de espera. Mas depois há os outros que estão em casa, que desenvolvem a doença de forma ligeira, e que são a grande maioria, e para os quais temos de telefonar diariamente para saber como estão até terem alta.
Mesmo os casos que já não têm sintomas, ou seja a doença, mas que ainda têm testes positivos?
Exatamente. Casos que já não estão doentes, já sem capacidade de contagiar outros, mas que, por alguma razão, o teste continua positivo durante um mês e até mais tempo. E nós temos de telefonar todos os dias a estes doentes. É uma redundância e retira capacidade de resposta aos médicos para outras situações.
É mesmo necessário estes contactos durante tanto tempo?
Não. Por isso, ansiamos a publicação de uma nova norma da Direção-Geral da Saúde (DGS) que nos retire esta obrigação de telefonar para todos os casos que ainda são positivos, mas que já não estão doentes e que se encontram em casa. Não há justificação, porque estes doentes têm sintomas ligeiros ou não têm sequer sintomas.
"Ao fim de dez dias sem sintomas já não há capacidade para contagiar outras pessoas. O critério de alta tem de ser alterado, porque estamos a telefonar para pessoas que já não estão doentes, mas que têm testes positivos durante mais de um mês".
Mas estas pessoas para voltarem à sua vida normal têm de ter alta...
Esse é o segundo problema, porque o critério de alta que está definido é de três dias sem sintomas e um segundo teste negativo. Há doentes, como referi, que já sem sintomas registam durante um mês ou mais testes positivos. É importante que se altere o critério de alta. Defendemos que nestes casos ligeiros quando já não há sintomas ao fim de dez dias a pessoa deve ter alta e voltar à vida normal. Não há razão nenhuma para fazer novo teste e continuar a fazer testes durante tanto tempo. Nesta altura, já se sabe que ao fim de dez dias sem sintomas já não há capacidade para contagiar outras pessoas. Portanto, defendemos a alteração do critério de alta. É preciso não esquecer que neste momento já temos mais casos ativos do que em abril. e, repito, a grande maioria está a ser acompanhada pelos médicos de família.
Se deixarem estes contactos ficam mais aliviados para outras funções?
Claro. Mas volto à questão do telefone - é preciso não esquecer que estamos a usar os telefones ou as teleconsultas como medidas de precaução, porque não podemos ter salas de espera cheias, e porque temos de manter o distanciamento social - para as pessoas perceberem como esta é uma tarefa desdobrada. Por exemplo, quando ligamos para uma pessoa nem sempre obtemos resposta do outro lado, temos de voltar a ligar as vezes necessárias e até conseguirmos. Depois temos números de telefone errados, temos uma população muito idosa que nem sempre entende as orientações que damos e duplicamos as chamadas para os familiares ou para quem cuida deles. Mas isto tem de ser. Não quer dizer que estas tarefas não possam ser afinadas no futuro, mas este não é o normal funcionamento de uma unidade de cuidados primários nem a abordagem de um médico de família com os doentes. Não podemos trabalhar só com base no telefone ou por videochamada.
Mas é disso tudo que se queixam os utentes, a situação pode piorar com uma segunda vaga?
Não creio que esteja a acontecer uma segunda vaga, embora tenhamos muitos casos ativos. O número de internamentos ainda não é igual ao que tivemos em abril, e gostaríamos que não fosse, mas daí a dizer que estamos numa segunda vaga não creio. A questão é que há uma grande assimetria no país, desde o início. Tivemos um acumular de surtos na região do Porto, que só teve desenvolvimento mais tarde na região de Lisboa, mas com uma grande diferença, enquanto nas outras regiões a evolução da doença tem tido uma taxa mais branda, em Lisboa a curva nunca aplanou. Aqui nunca tivemos o fim da primeira onda, ainda estamos nessa onda e vai continuar sempre a aumentar.
"A região de Lisboa é onde há mais falta de todos os recursos."
Mais uma vez, os utentes desta região têm razão...
Ora aí está. Esta pressão dos casos ativos e internamentos aliada ao velho problema da falta de unidades de saúde, não é só de médicos de família, e de outros recursos está a resultar nessas queixas.
Também é a região mais populosa do país...
É a região onde temos falta de todos os recursos e de profissionais, onde há maior pressão demográfica. Em termos de doença, é a região que tem mais casos e menos letalidade, nas outras regiões a letalidade é maior.
Que medidas deveriam ser tomadas já nesta região?
É preciso um plano específico para resolver os problemas dos centros de saúde desta região, e que têm mais de dez a 15 anos. São medidas que não são necessárias para o resto do país, porque o resto do país não tem a pressão demográfica que tem a região da Grande Lisboa. São precisas medidas apenas adequadas a esta área.
Tais como...
A criação de novas unidades de saúde. Nas que existem não há espaço físico para receber mais profissionais. Já disse a vários ministros: 'Se tivesse os 500 médicos que faltam em Lisboa onde os colocaria?' Não há espaço para os colocar, como não há espaço para consultórios, computadores e para os outros profissionais. Não há condições físicas para se absorver profissionais para se dar mais resposta. Daí dizer ser preciso um plano plurianual para os cuidados primários, um plano para mais do que uma legislatura, para mais do que um ministério ou ministro.
Não há esse plano...
Não. Um plano que olhe para os recursos humanos e para as necessidades dos profissionais, que lhes dê condições para trabalhar, para atender as pessoas com dignidade. Fala-se muito em colocar médicos no interior do país, em termos de cuidados primários o interior do país é a periferia de Lisboa, os concelhos de Sintra, Seixal, Loures, Amadora, onde a população aumentou e muito.
É a região onde mais faltam médicos de família. Mas isto não se consegue resolver tão depressa. Nas vagas lançadas agora para internato médico, Lisboa vai receber mais de 200 candidatos, são suficientes?
Não. Aliás, o norte é a região que recebe mais, porque tem mais capacidade de formação. Lisboa não tem tanta capacidade de formação e isto é um círculo vicioso que interessa romper. Como não há unidades suficientes na região de Lisboa, também não há capacidade para formar mais médicos de família. Há que criar mais unidades nesta região para aumentar a capacidade de formação. Isto tem de ser feito progressivamente, mas se não for assim, não saímos disto.
Mas, afinal, o que é urgente nos cuidados primários?
Imediato, imediato é diminuir alguns trabalhos que temos de fazer e que não são essenciais para aumentar a capacidade de resposta aos doentes covid e não covid. Olhe, aumentar a capacidade de pessoal para atender telefones.
"Em termos de pessoal estamos numa situação pior do que em abril. Há colegas que se aposentaram."
Acredita que isso vai ser possível?
Conseguiremos aumentar a capacidade de resposta se nos aumentarem o número de profissionais. Precisamos de mais recursos em todas as áreas, não só de médicos. Em termos de pessoal temos uma situação pior do que em abril.
Porquê?
Há colegas que se aposentaram. E devemos perder cerca de cem colegas que se especializaram neste ano e que não devem ser colocados no concurso que está agora a decorrer. Há 400 médicos que acabaram de se formar em medicina familiar, mas destes cem devem ficar de fora. Mas deve ser dada aos cuidados primários a capacidade financeira para possíveis contratações destes colegas, para que possam, pelo menos, ficar onde são necessários como tarefeiros, nem que seja por seis meses. É assim que são contratados para os hospitais.
E se forem contratados pelos hospitais?
Não quero acreditar que os hospitais venham a ter capacidade financeira para contratar estes colegas e os centros de saúde não. Estes cem deveriam ser contratados para as unidades de saúde de proximidade. São médicos de família, colegas especialistas e devem ser contratados para os locais onde são necessários.
Ainda há medidas de contenção na contratação de profissionais?
Claro que há. São as tais medidas políticas restritivas de ausência de investimento nos centros de saúde. Tem de se mudar isto. Os centros de saúde têm de ter capacidade para contratar pessoal para os próximos seis meses. Isto é essencial para o controlo da doença e para a prevenção.
É essencial que a tutela olhe para os cuidados primários com prioridade?
Absolutamente. O Plano Outono-Inverno não define nada. É como se fossem orientações que estão a ser dadas aos pescadores para pescarem mais peixe, sem lhes dizerem como devem pescar e com que material.
Quer dizer que o inverno pode ser duro...
Pode. As nossas unidades são muito pequenas para dar resposta à possibilidade de termos um inverno rigoroso, com covid, muito frio e muitas outras doenças respiratórias. Estamos a pensar no pior, e temos de nos preparar para o pior, mas até podemos ter uma situação leve, se não houver frio. É fundamental que para já se consiga vacinar acima do que se vacinou no ano passado e que foi uma percentagem muito boa - 76% da população com mais de 65 anos. Neste ano temos de conseguir igual ou melhor. Senão, pode ser muito duro para as pessoas. Por isso, é também importante que as pessoas evitem estar juntas, que usem máscaras em locais fechados ou abertos - a máscara não resolve tudo, mas resolve o que resolve e vai durar ainda mais anos. É fundamental que todos continuemas a tomar medidas de proteção.
Há pouco estava a falar das tarefas que podem aliviar os médicos de família. Além dos telefonemas, quais são as outras?
Por exemplo, a questão das baixas médicas. Pode ser simplificada. Não há razão para o utente e nós sermos pressionados com essa situação. Quando se trata da renovação de uma baixa, no nosso consultório temos o registo do doente, este não deveria precisar de se deslocar ao centro de saúde ou pedir uma consulta para ter esta renovação, bastava enviar um e-mail. Não faz sentido que o doente ou alguém por ele tenha de ir ao centro de saúde buscar um papel para entregar ao patrão, que até já foi emitido para a Segurança Social. Este procedimento pode ser simplificado.
Baixas
médicas de curta duração deveriam ser automáticas, aliviaria os médicos de família.
E as baixas que são apenas de curta duração?
Também. Se são situações de curta duração, três a cinco dias, que seja preciso um papel do médico a comprovar doença. Esses dias já são descontados ao trabalhador, este sabe que está doente, que não está em condições de trabalhar, tem de assumir essa responsabilidade. Deveria bastar um telefonema à empresa para dizer: 'Não estou em condições de trabalhar.' Uma simples constipação não carece de observação médica e a própria pessoa tem consciência de que não pode ir trabalhar, que não deve andar nos transportes públicos, que não deve contactar com os colegas, portanto deveria ser automático. Se depois a situação ultrapassasse estes dias, a pessoa teria de ser observada para se prolongar a baixa. Mas até aí, não. Isto facilitaria e muito o trabalho do médico de família e retiraria muita ansiedade aos utentes. Até porque estes dias também são descontados de forma automática ao trabalhador.
Quais são as principais queixas que tem recebido dos seus colegas?
A sobrecarga de trabalho e a falta de apoio dos nossos dirigentes. Sentimos que estamos esquecidos pelos nossos dirigentes, não queremos pensar que os nossos generais não conhecem as trincheiras. Nós estamos nas trincheiras na linha da frente, mas os nossos generais não nos ligam nenhuma. Essa é a noção que temos e que os colegas têm, de que não valorizam o trabalho que está a ser feito nos centros de saúde.
Quando fala de generais refere-se à ministra?
Aos órgãos de gestão política e da saúde. Estranhamos que não nos perguntem o que é preciso fazer, o que sentimos e o que precisamos. Nunca nos perguntaram. É triste...
Foi por isso que pediram audiência à ministra no dia 7 de setembro?
Sim. Queremos apresentar ideias, discutir estes problemas e saber o que estão a pensar fazer.
Já tiveram resposta?
Não, e já passou um mês. É um bom exemplo do que estava a dizer, se calhar não contam com os médicos de família.