Inspetor de topo no SEF advoga uso de bastão para "tortura necessária"

Inspetor coordenador, no topo da carreira, defendeu a adoção do uso de bastão no SEF para situações de "tortura necessária". Foi-lhe instaurado processo disciplinar por "desconhecer o significado da palavra tortura" e exprimir "opinião contrária aos princípios do Estado de direito democrático".
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"Tortura necessária" é "a legítima necessidade do uso da força adequada e proporcional por parte das forças e serviços de segurança", "quando um cidadão seja agressivo para os inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF)"; "tortura gratuita" ocorre "sempre que a utilização da força não esteja devidamente fundamentada."

Estes termos e definições foram usados por um inspetor coordenador do SEF, categoria a que se chega no topo da carreira nesta polícia, numa comunicação enviada a 6 de dezembro de 2020, por mail, a vários colegas e superiores hierárquicos. Nesta, defendia a introdução de bastões no equipamento distribuído no SEF, bastões que serviriam precisamente para infligir a tal "tortura".

Ora tortura é, como terá de ser do domínio público e mais ainda dos funcionários de uma polícia criminal como o SEF, um crime previsto no Código Penal, no seu artigo 243º: "Tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos". Punido com pena de um a cinco anos de prisão, é descrito como o ato de um polícia ou equiparado que consista em "infligir sofrimento físico ou psicológico agudo (...), com intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade da vítima" e o objetivo de "obter confissão, depoimento, declaração ou informação"; "castigar por ato cometido ou supostamente cometido"; "intimidar".

Perante a utilização deste termo na citada exposição, foi rapidamente aberto, pelo SEF, um inquérito disciplinar ao inspetor em causa, avocado poucos dias depois - a 10 de dezembro - pela Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI).

Na sua inquirição, segundo a IGAI, o inspetor coordenador "revelou desconhecer o significado da palavra tortura, mantendo sua classificação e escudando-se numa questão de mera interpretação" e "distinguiu dois tipos de tortura, empregados pelo SEF: a necessária, aplicável sempre que um cidadão seja agressivo para os inspetores do SEF e a gratuita, sempre que a utilização da força não esteja devidamente fundamentada."

A IGAI concluiu que o inspetor deve ser punido disciplinarmente por ter vertido a escrito e divulgado por vários destinatários do SEF "uma opinião contrária aos seus deveres funcionais e aos princípios de um Estado de Direito Democrático".

De acordo com esta decisão da IGAI, à qual o DN teve acesso, a proposta do inspetor consistia numa exposição com o título "Instituição do uso de bastão nas unidades orgânicas do SEF", na qual defendia que o tipo de bastão usado pela PSP e GNR fosse adotado também no SEF, onde bastões não fazem parte do equipamento distribuído.

O motivo de tal proposta prender-se-ia, segundo explicou o seu autor, com o facto de considerar que a morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk - ocorrida a 12 de março de 2020 sob custódia do SEF e atribuída pela autópsia a asfixia causada pelo efeito combinado de várias fraturas nas costelas devidas a agressões e a mais de oito horas algemado de mãos atrás das costas - se tinha devido a uma tareia com uma arma proibida: o "batonete". Segundo a sua descrição, trata-se de um objeto de madeira de cerca de 25 centímetros que seria utilizado para "acalmar" os cidadãos não admitidos (a quem não era permitida a entrada em território nacional, como sucedeu com Ihor) "mais agitados ou agressivos" no aeroporto de Lisboa quando este inspetor ali prestou serviço na década de 1990, quando era agente da Guarda Fiscal (como o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa Sérgio Henriques, expulso da função pública pelo seu papel no caso Ihor, de quem terá sido colega no estágio para inspetor coordenador, transitou desta polícia, extinta em 1993, para o SEF).

Assim, este este funcionário no topo da carreira, que já como inspetor coordenador, a partir de 2005, esteve colocado na Direção Regional do Norte do SEF e na do Algarve, considera que o procedimento descrito - "acalmar" pessoas espancando-as - continua a ser adotado naquela polícia até à terceira década do século XXI, vendo na adoção de um bastão regulamentar um progresso "para evitar a utilização de outro tipo de artefactos" e "situações análogas" à ocorrida com Ihor.

Quanto à sua utilização do verbo "acalmar" para designar agressões por parte dos funcionários do SEF coincide com a de várias testemunhas no processo sobre a morte de Ihor.

A ponto de o juiz presidente, no julgamento de primeira instância, ter questionado: "Que é isso de ir lá acalmar os passageiros [termo usado no SEF para designar os não admitidos no país, detidos até ao repatriamento]? Que é que os inspetores do SEF têm para tentar acalmar os passageiros que os seguranças [de uma empresa de segurança privada contratada pelo SEF para fazer a gestão do centro de detenção do aeroporto de Lisboa onde Ihor morreu] não têm?" A resposta, dada por um inspetor/testemunha, foi "É mais dissuasor ser polícia, e temos outras maneiras de falar."

Recorde-se que os três inspetores acusados do homicídio do cidadão ucraniano, e condenados, em segunda instância, pelo Tribunal da Relação de Lisboa a nove anos de prisão (pelo crime de ofensas à integridade física graves, qualificadas e agravadas pelo resultado morte, condenação que está em recurso para o Supremo), traziam consigo, quando foram ao encontro de Ihor, bastões extensíveis. Um deles empunhava um quando entrou na divisão (sem câmara de vigilância) onde Ihor estava fechado. Os bastões que detinham foram analisados depois da detenção dos inspetores (que aconteceu a 30 de março) e um deles tinha sangue humano, mas não foi possível determinar se correspondia ao cidadão ucraniano.

Estes bastões, que não fazem parte do equipamento do SEF, foram considerados pelo Ministério Público (MP) "armas proibidas", acusação que o tribunal de primeira instância acabou por deixar cair, ao admitir a argumentação dos arguidos: de que já detinham o bastão, como inspetores do SEF, antes de este ser qualificado legalmente, em 2009, como arma de classe A e de o seu porte por elementos das forças de segurança passar a implicar, desde 2019, uma autorização da direção nacional da PSP.

Um dos arguidos, Luís Silva, assinalou, na sua contestação à acusação do MP, que "ao longo do 16 anos ao serviço do SEF sempre utilizou este bastão, transportando-o à cintura, num porta-bastões, de forma aparente, isto é, de forma não oculta, visível e percetível a todos". E, garante, não era o único: "E como ele a maior parte - ou pelo menos grande parte - dos seus colegas do SEF, os quais sempre viu munidos de bastões extensíveis idênticos ou semelhantes ao seu, sem que ele - e, tanto quanto sabe, qualquer dos seu colegas - alguma vez tenha sido advertido, designadamente por qualquer superior hierárquico ou por qualquer colega, no sentido de não poder deter ou utilizar tais objetos".

De facto, apesar da certificação da direção nacional do SEF, em abril de 2020, ao MP de que este tipo de bastão nunca tinha sido distribuído nesta polícia, o testemunho de vários inspetores, incluindo superiores hierárquicos dos três arguidos, quer à Polícia Judiciária (PJ) quer à IGAI (e até ao DN) permite concluir que o respetivo porte era muito comum.

Um inspetor-chefe inquirido quer pela PJ quer pela IGAI asseverou-o: "Há inspetores do SEF, em serviço no Aeroporto Humberto Delgado, que ostentam à cintura bastões extensíveis." O mesmo tinham afirmado ao DN, logo no início de abril de 2020, dois outros inspetores do SEF que pediram para não ser identificados. "A maior parte dos inspetores tem um bastão", disse um deles ao jornal, enquanto o outro admitiu: "Já vi inspetores com bastões à cintura. Não vou dizer que nunca vi."

Nenhum dos dois sabia dizer, nessa altura, se o uso seria legal ou ilegal, mas consideravam que se era notório - o bastão à cintura não é uma coisa que passe despercebida - não deveria ser proibido, e que faria parte do equipamento que os inspetores poderiam comprar e usar ao serviço.

Em abril de 2021 o atual diretor nacional do SEF, tenente-general Botelho Miguel, que entrou em funções após a demissão da sua antecessora Cristina Gatões em dezembro de 2020, em testemunho escrito para o tribunal que julgava os três inspetores pelo homicídio de Ihor, reconheceu que armas como os bastões extensíveis "não tinham um número de série e não eram alvo de qualquer sistema de inventariação por parte do Serviço, sendo geridas numa lógica de "consumível"".

Este oficial revelou que "o armazenamento, registo e distribuição" dos bastões "obedecia às regras de economato, ou seja, para além de não se encontrarem em armeiro, mas em armazéns comuns, a sua distribuição era alvo de registo individualizado (por funcionário), constatando-se, da escassa documentação existente a respeito das mesmas, que a sua remessa para as unidades orgânicas era feita nos mesmos moldes do demais material tático (lanternas, algemas, coletes), sem que existisse um registo centralizado da distribuição individual".

No dia a seguir a iniciar as suas funções como diretor nacional do SEF, Botelho Miguel ordenou que fossem recolhidas as armas de todas as classes, com exceção das armas de fogo. Na resposta ao tribunal assinalou que pretendeu desse modo "alargar o inventário das armas de outras classes sujeitando todas, independentemente da sua natureza, à mesma disciplina de armazenamento, cadastro e arquivo centralizado vigente para as armas de fogo, assim como a verificação da validade de todas as classes de armas". Até ao momento do seu testemunho ao tribunal, porém, tinham sido entregues apenas dois bastões extensíveis.

O DN tentou saber, junto de funcionários do SEF, quem é o inspetor coordenador em causa - existem poucas dezenas nesta polícia com tal grau - e se ouviram falar deste caso e se confirmam a existência e utilização no SEF, nos termos descritos, de um instrumento denominado "batonete".

De acordo com um dos contactados pelo jornal, que preferiu não ser identificado, o inspetor coordenador sujeito a processo disciplinar é conhecido pelos mails disparatados que envia e estará nesta altura de baixa psiquiátrica.

Quanto ao "batonete" e à prática de tortura habitual no SEF, esta fonte do DN, que entrou no SEF na década de 1990, garante nunca ter ouvido falar de tal coisa.

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