O novo romance de Inês Pedrosa contém todos os ingredientes que preenchem as polémicas com que os portugueses parecem gostar de se digladiar atualmente nas redes sociais: violência sobre as mulheres, pedofilia, racismo, relações proibidas pela moral, jornalismo irresponsável e touradas. A autora garante que não escolheu temas para fazer um romance que se encaixe nestes tempos: "Sempre falei destas causas em todos os meus livros.".E prova que está despreocupada com os temas sensacionalistas que surgem no livro com esta revelação: "O meu segundo romance, Nas Tuas Mãos, foi publicado em 1997 e agora acaba de ser traduzido nos Estados Unidos. O mais curioso é que uma revista gay famosa, The Advocate, colocou-o entre os dez melhores livros LGBT do ano porque gira em torno de uma mulher a quem o marido diz na noite de casamento que tem um amante e não irá abdicar dele. É de 1997 e está entre os livros "fraturantes" de 2018 e, tal como com este, não o escrevi com qualquer intenção especial ou para ser um livro LGBT.".Não se fica por aí: "Espero que um livro meu seja sempre o reflexo de um tempo e que interesse para lá do seu tempo. Sempre falei destas causas porque há uma questão que dominou o século XXI e ainda se mantém atual: a relação de poder entre homens e mulheres após deixar de haver o predomínio de um género. Situação que foi posta em causa há décadas e tem obrigado a redefinir a masculinidade e a feminilidade, a exemplo de qualquer uma das grandes revoluções da humanidade. Trato do tema em todos os livros.".Pergunta-se se estruturou o romance antes de o começar a escrever: "Não o faço há muitos e só aconteceu no primeiro livro porque no início há o medo de não ser capaz de levar a história com lógica até ao fim. Aliás, raramente sei como é que o livro vai terminar. Até lá, o necessário é conseguir agarrar as personagens, porque é como se elas estivessem vivas e a fazerem questão de se afirmarem a si próprias.".Quanto à dureza dos diálogos, a resposta de Inês Pedrosa é: "São situações que se desenvolvem por si, afinal são muitos anos de vida e de jornalismo e os diálogos encaixam-se nos universos descritos, mas resultam também de uma franqueza e bom senso popular que nos vai permitindo sobreviver a tanta dureza.".De que trata o romance O Processo Violeta afinal? A história central é a de um amor entre uma professora e um aluno muito mais novo, à qual vão sendo acrescentadas várias camadas de sub-histórias que têm em muito que ver com a principal..Pedofilia?.A introdução de uma paixão proibida socialmente surgiu a Inês Pedrosa através de um caso real: "Não faço nada de propósito, preciso que o tema me deixe obcecada para escrever. Tem havido em muito no último ano o ressurgimento de um certo tipo de feminismo, com uma dose grande de puritanismo, que põe em causa a opressão das mulheres e das crianças, bem como a sedução de crianças e adolescentes. Este livro surge muito antes disso, desde que houve o caso de uma professora nos Estados Unidos e de um aluno que se apaixonam e que me fez questionar essa realidade. Aliás, num ensaio do Slavoj Zizek, ele dizia que essa era a grande história de amor do século XX, o que me fez pensar nos nossos interditos. Como foi Romeu e Julieta por outras razões. Vivemos numa época em que temos a ilusão de não termos preconceitos e proibições e essa é a maior das ilusões. O trabalho de um escritor é perceber onde estão agora os limites da liberdade e do preconceito.".Touradas, sim senhor.Em redor dos temas centrais existe um toureiro profissional e alguém que também quer seguir essas pisadas: "O universo da tauromaquia pareceu-me interessante porque é uma realidade portuguesa ainda muito forte, por isso polémica, e que só encontro traduzida muito escassamente na literatura portuguesa. Até em Alves Redol, que era devoto das touradas, só se verifica a presença dos touros nos seus romances como paisagem, mas a tourada no seu ritual nem por isso. Quando comecei a desenvolver a história e o romance se tornou sobre a maturidade, achei que o universo tauromáquico tinha muito que ver com isso: quais são os valores da maturidade, da coragem e da masculinidade, e dei-me a pensar que era um tema sobre o qual até agora eu nunca tinha falado. É certo que nunca gostei de touradas, mas lembro-me de ter visto na televisão ainda a preto e branco e de ter ficado muito chocada, quando passei a ver a cores, como o sangue do animal se destacava. Pior, recordo o cheiro do sangue dos animais que é muito forte e enjoava-me - para algumas pessoas essa é a atração. Não receei a temática porque não posso pensar nisso enquanto escrevo; idealmente crescemos em liberdade e talvez há uns anos me assustasse essa polémica e o que as pessoas pensam, neste momento interessa-me escavar os temas em que as ideias esquecem a reflexão. Se não é para interrogar o que existe, não adianta estar a escrever.".Racismo, nunca falta.A paixão da professora e do aluno tem a particularidade de ela ser branca e ele filho de pai português e de mãe cabo-verdiana, que irá colocar a questão constante do racismo: "Não foi de propósito que o fiz; estes casos não são frequentes e creio que fazia mais sentido que o personagem se sentisse marginalizado e isso não é novo na minha escrita - referir que sempre houve um preconceito racial no nosso país. Era a oportunidade de dar esse lado de Portugal onde o racismo existe encapotado no quotidiano e pareceu-me mais verosímil esse rapaz na construção do personagem. As grandes paixões resultam do encontro de duas sensibilidades que se sentem incompreendidas pelo mundo. Mesmo que a professora esteja muito integrada, também é marginalizada por outras razões.".Violação, descrição realista.Apesar de ocupar poucas páginas em O Processo Violeta, o espaço em que a escritora descreve a violação de uma professora por um aluno é uma das partes mais violentas e realistas, alternando as palavras ameaçadoras do violador com as sensações de repulsa da mulher, e fazendo um contraponto à outra professora apaixonada por um jovem: "A personagem fica muito marcada pela violação, mas ela vai sempre rejeitar ser definida por essa situação. Hoje, na ânsia de justiça social de libertar as oprimidas, há um tom de condescendência que é uma outra forma de opressão. Neste caso, a professora rejeita que a violação a defina, não denuncia o violador porque sabe que se fizer queixa dele os comentários serão os tradicionais, o de dizerem que foi ela quem provocou porque tinha uma minissaia exagerada. Queria mostrar onde está a inocência nos dois lados da situação, porque se mantém o preconceito de que um jovem é sempre inocente e seduzido enquanto um adulto é sempre o mau e o opressor.".Jornalismo, o fim da meia branca.Além das questões já referidas nas várias camadas do romance O Processo Violeta, há uma que cimenta as várias partes: o jornalismo. A personagem jornalista recupera algumas das memórias da escritora sobre o jornal O Independente e a influência do jornal na sociedade dos anos 1980: "O processo de transformação de Portugal e do jornalismo através da mudança extraordinária que houve a partir dos anos 80 leva-nos ao jornalismo de hoje e ao universo em decadência da masculinidade que acompanha esta sociedade de uma nova democracia. A cultura do sensacionalismo começa naqueles com a integração de Portugal em espaços maiores, sendo que o caminho que tem feito a comunicação social nos últimos 20 anos é semelhante em todo o mundo. Portugal hoje é menos salazarista, menos calafetador dos escândalos, mas tornou-se mais moralista e puritano. Ainda há poucos anos, a história do impeachment de Bill Clinton mostrou que em Portugal nunca haveria então um processo de devassa absoluta da vida de um político como aquela que lhe aconteceu, mas agora já não sei se será assim. Uma coisa, no entanto, mantém-se: os órgãos de comunicação social demitem-se da sua função de inteligência crítica desde então. Só que na altura vivia-se uma época de euforia, de dinheiro e de Europa, enquanto agora passámos por crises graves e existe uma carga de ressentimento que condiciona o moralismo atual que a imprensa carreia. Como uma personagem diz, "o rigor é para os mortos" é algo que continua e que cresceu porque já não existe dilemas éticos que entretanto desapareceram das redações. A parte de O Insubmisso é uma homenagem a O Independente, em muito ficcionado mas que deve bastante àquele espírito de uma gente com vinte e poucos anos que fazia o jornal. Foi uma experiência única, mesmo que não acredite que o jornal carburasse a drogas como se disse recentemente. O que se queria era ocupar um espaço ideológico e fazer uma afirmação de uma geração que contestava o que era representado por Cavaco Silva: o snobe contra o Portugal de meia branca, a crítica de uma pretensa aristocracia contra os self-made men, que cá eram chamados patos bravos. Éramos todos muito jovens!".O Processo Violeta.Inês Pedrosa.Porto Editora, 230 páginas