...Em "forma de assim", algo que não se explica bem. É um IndieLisboa bravo, bravio, sempre a apontar pistas para o que ainda não é do plano do consagrado. Uma edição talvez com um teor mais militante e politizado. A direção de Miguel Valverde, Mafalda Melo e Carlos Ramos fez um trabalho de seleção arrojado e quase experimental. Em essência, é uma programação de riscos e onde o público é convidado a colocar-se em causa. Um festival pode servir para isto, sobretudo numa altura em que o mundo está em guerra e o ódio anda à ponta de cada esquina, mesmo com o espírito de abril a ser celebrado..Como sempre, o cinema português é o prato forte. Uma competição nacional que dá a ver o que de novo está a chegar e o que brilhou lá fora em festivais recentes. Nesse sentido, estes dias de Lisboa são a grande montra de um cinema português que não pede licença para ser mais arriscado e fluído. Entre a ficção, o documentário e o experimental são filmes em grande quantidade, todos eles quase a pedir estreia comercial, mesmo com os números cada vez mais cadavéricos. Trata-se de um evidente contra ciclo entre a vontade de fazer e a vontade de ver de um público que já não percebe quando um filme português estreia. A sorte, vamos ver se não há reviravoltas, é que nos festivais, há uma outra pujança. No Indie, as sessões nacionais têm sempre público, entre curiosos e o próprio meio..João Botelho é este ano uma espécie de Indie herói involuntário com dois filmes selecionados: o documentário O Jovem Cunhal e a antestreia mundial de Um Filme em Forma de Assim, a partir de Alexandre O"Neill. O Jovem Cunhal é uma investigação do histórico líder do PCP, logo agora que o partido está nas bocas do país por não ser taxativo perante quem é invadido e agredido na invasão à Ucrânia. Botelho segue as pistas dos primeiros anos de Álvaro Cunhal, encenando também momentos dos seus livros com atores como Margarida Vila-Nova e João Pedro Vaz. Mas o grande acontecimento é Um Filme em Forma de Assim, todo ele filmado em estúdio para que ninguém se esqueça do artifício. Artifício que é o pedal maior de um filme que mistura e remistura textos de Alexandre O"Neill numa Lisboa em que vamos da noitadas de jazz à ópera e às raves. Botelho a filmar um caos com caução poética e uma energia frondosa. Talvez seja o seu filme mais jovem em muitos anos, uma pequena grande desbunda que em vez de direção de fotografia tem direção de iluminação de um iluminado João Ribeiro e sabe tirar da fotogenia dos atores algo bem mais profundo do que se poderia imaginar (Inês Castel-Branco, Maria Leite, Joana Santos e sobretudo Crista Alfaiate são de um esplendor estrondoso!)..Um Filme em Forma de Assim tem estreia marcada para o próximo mês, mesmo sem passagem pelos festivais internacionais. Pelo Indie, é já amanhã, no São Jorge, para conferir um multiverso poético muito português e provar que o mundo literário de O"Neill é bem filmável, podendo ser uma bela aventura dos sentidos, mesmo quando o seu subtítulo refere que se trata de um "divertimento em tempos de pandemia". Mas é bem mais do que isso, é um achado não narrativo com um sentido de deslumbramento que nos puxa para cima..Também em antestreia no Indie, Super Natural, de Jorge Jácome, dia 30 e 3, o tal objeto não identificado que venceu em Berlim o prémio da crítica no Forum. Pensado para ser um espetáculo visual para a tela, esta colaboração do realizador de Flores com o Teatro Praga, é uma desafiante colagem de imagens experimentais e ideias de ficção que nos interpelam para um diálogo sobre os limites da perceção cósmica. O que é natural, o que é um gesto de amor... Uma viagem à Madeira com uma liberdade tão anarca como selvagem. Eis um filme que precisa de mimo, tal como outra das pérolas portuguesas que esteve na Berlinale, Águas do Pastaza, de Inês T. Alves, em exibição dia 1 e 3, olhar sobre uma comunidade de índios do rio Pastaza, entre o Equador e o Peru, que é antes um olhar sobre uma utopia sobre a aventura da infância. A cineasta portuguesa partilha uma energia doce de crianças felizes numa floresta onde o YouTube e os telemóveis convivem com caça e convívio com um quotidiano encantado. É lindo demais....Das curtas-metragens, talvez não seja exagero apontar um certo favoritismo a Azul, de Ágata Pinho, presente em Roterdão. São 20 minutos de rara perturbação, um filme em queda livre perante um desejo performativo. Uma queda assombrosa... Mas o favoritismo também terá de ser dividido com By Flávio, de Pedro Cabeleira, presença em Berlim na competição oficial. Um filme sobre os limites dos condicionamentos das redes sociais. Uma prova de maturidade de um dos cineastas já obrigatórios da nova geração. E o mesmo poderá se aplicar a Pedro Neves Marques com Tornar-se um Homem na Idade Média, confirmação de um estilo, confirmação de um discurso cinematográfico que aborda questões de género com uma reflexão adulta..Mas é também nas curtas que está Mistida, de Falcão Nhaga, o tal que foi selecionado para a Cine-Fondation de Cannes 2022. Um filme-escola que promete..dnot@dn.pt