Circula por aí a receita de uma bebida que dizem ser apropriada para tapar os buracos na alma de milhões de americanos nesta sexta-feira: um white russian com uma casca de laranja e decoração em falsa folha de ouro. Nome do cocktail: "Nyet My President". O mantra que se tem repetido por aqui desde 8 de novembro, agora com um toquezinho de russo (nyet - não), é esse: "Não é o meu Presidente"..Mas é, por mais memes que se partilhem no Facebook. Donald J. Trump assume nesta semana o cargo para que foi eleito, presidente dos Estados Unidos da América, sob um manto de polémicas, alegações de envolvimentos duvidosos com a Rússia e uma popularidade miserável. A taxa de aprovação daquele que será o 45.º presidente da terra dos livres é de 39%, algo nunca visto na história recente. Parece claro que Trump não conquistou ninguém entre os cidadãos que não votaram nele, e é capaz de ter perdido uns quantos fãs com as suas últimas maquinações..Ou talvez isso seja a oposição a querer com muita força que os apoiantes de Trump comecem a arrepender-se já, no início da procissão. E eu ainda não encontrei um único que o assuma. Ameaças de censura a certos órgãos de comunicação social, relatórios escandalosos sobre os laços com Moscovo, conflitos de interesse, nepotismo, marcha-atrás em promessas de campanha - nada do que aconteceu nos últimos dois meses moveu os votantes do magnata um centímetro que fosse. Por várias vezes ouvi-os dizer algo do estilo "quanto mais o insultam e atacam, mais o apoio". Nenhuma agência de inteligência vai convencê-los. Nenhuma história com factos verificados vai movê-los. Há apenas uma coisa que funcionará, e essa não virá no curto prazo: a realidade.."Vá, sejam honestos, aqui quem é que votou em Donald Trump?", perguntou o músico português Nuno Bettencourt, guitarrista dos Extreme e radicado nos Estados Unidos desde a infância, durante um concerto apinhado no lendário Lucky Strike, em Hollywood. Nem uma mão se levantou. Olhámos uns para os outros, sorrindo. Ele apontou para alguém na fila da frente, de forma meio jocosa meio acusatória, e gritou: "Eu sei que tu votaste em Trump!" Durante a canção que se seguiu, um dos músicos levantou a guitarra branca para que toda a audiência pudesse ver a parte de trás: tinha escrito à mão "Not My President". Houve aplausos. As artes são liberais, os californianos são normalmente de esquerda, e naquela noite de rock houve sintonia no ódio comum ao novo presidente..Só que a realidade há de bater de frente com esta bolha, e ela rebentará tanto para os se julgam fora do alcance da mão de Trump como para os que ajudaram a pô-la na garganta da América. A realidade, essa coisa que nos acontece nos intervalos das discussões com estranhos no Facebook e as respostas "épicas" no Twitter, não vai caber nos balões das bandas desenhadas que o LA Times publica aos domingos..Ela vai bater de chapa com os cidadãos que votaram Trump e não sabiam que o Obamacare que ele já começou a desmantelar é a mesma coisa que o Affordable Care Act, do qual dependem para os cuidados de saúde..Ela vai bater de frente com os trabalhadores de setores condenados pela globalização, como a manufatura têxtil e as minas de carvão, quando não for possível voltar atrás no tempo para lhes dar empregos para a vida..Ela vai cair na cabeça das mulheres que elegeram um presidente que acredita dever haver punição para quem faça um aborto..Ela vai passar uma rasteira aos pequenos empresários que salivam por reduções de impostos, quando descobrirem que são os grandes magnatas como Trump que irão beneficiar da sua política fiscal..Ela vai apertar os pulsos dos jornalistas que acordaram tarde de mais e agora veem um presidente a escolher favoritos e a escorraçar outros, como se fosse mais uma edição de Celebrity Apprentice. Vive-se um estado de indignação permanente. Não será exagerado dizer que estamos prestes a assistir a uma batalha entre o Bem e o Mal. A grande desgraça é que talvez não saibamos exatamente de que lado estamos.