A experiência do confinamento. Depois, o desenlace trágico. A loucura, porém, adivinhara-se muito antes disso, quando iam ainda a caminho. Numa manhã límpida de Outono, eram não mais do que um ponto minúsculo a serpentear no horizonte. A estrada ascendente, rumo à montanha. A câmara fixa-se nesse ponto, no VW Beetle amarelo, acompanha-o sem tréguas, aproxima-se e distancia-se dele como uma ave de rapina no encalço da presa, um deus grego vingativo ou, talvez, um anjo maléfico prestes a irromper numa história humana. Em cortante contraste com a paisagem idílica, radiosa, a música prenuncia a tragédia: composta por Wendy Carlos, baseia-se no trecho da Sinfonia Fantástica em que Hector Berlioz parodiou os hinos em latim das missas, adaptando-os a um sabat de feiticeiras. Dies Irae, assim se chama a peça. A ira divina..A cena foi filmada no Glacier National Park por uma equipa transportada em helicópteros. Estiveram quase um mês à espera de que a nitidez da atmosfera permitisse ao lago reflectir de modo cristalino e puro, de uma perfeição sem mácula, a montanha envolvente. Todas as noites o produto das filmagens era enviado para a casa do realizador, que morava longe, em Inglaterra, e raramente ou quase nunca saía de casa, em confinamento total..Entretanto, outra equipa fazia filmagens aéreas do Timberline Lodge, no Oregon, captando aquele que será o palco de toda a tragédia: o histórico Overlook Hotel, no Colorado, cujos últimos hóspedes se preparavam para partir, já que o hotel iria encerrar durante a agreste temporada de Inverno. Pai, mãe e filho, a família Torrance fazia o caminho inverso, rumo à montanha. Jack Torrance, um professor do secundário com aspirações a escritor, decidira ir à entrevista para ser contratado como responsável pela segurança e pela manutenção do hotel durante os meses de clausura e confinamento invernoso..Logo nas cenas iniciais, o movimento da câmara espelha bem o génio e a mestria técnica do realizador, na linha de um anterior filme seu, The Killings, de 1956, e, mais remotamente, na esteira do uso pioneiro da câmara móvel feito por Max Ophüls e do deep focus que Orson Welles e Gregg Toland celebrizaram em Citizen Kane. Do ponto de vista técnico, contudo, o filme é menos lembrado pelas sequências iniciais do que pela utilização inovadora da Steadicam junto ao solo, com a objectiva a acompanhar Danny, a criança, no seu sinuoso percurso de triciclo pelos corredores vazios do hotel maldito..A cena, das mais famosas de todo o filme e da história do cinema, ainda hoje é considerada um prodígio de suspense, mas há nela algo ainda mais prodigioso: apesar da atenção obsessiva do realizador aos pormenores, a grande trouvaille dessa cena - o som entrecortado das rodas do triciclo nas carpetes e nos soalhos do hotel - não foi planeada para ser assim; resultou antes de um intrigante fruto do acaso. Outro pormenor importante: no seu sufocante trajecto pelos corredores do hotel, Danny tem, a dado momento, a visão pavorosa de duas meninas, as duas irmãs Grady, assassinadas brutalmente à machadada pelo seu pai, décadas antes, precisamente ali, no Overlook Hotel (e este nome, obviamente, também é sugestivo)..A imagem fantasmagórica das meninas vestidas a preceito, que falam a Danny numa voz monocórdica, arrepiante, inspira-se na famosa fotografia das gémeas idênticas captada por Diane Arbus em Roselle, Nova Jérsia, em 1967. Simplesmente, as irmãs Grady não eram gémeas: uma tinha 8 anos e a outra 10 quando foram assassinadas pelo pai, o que tem levado milhares de obcecados por estes filme a enredar-se nas mais imaginativas teorias sobre quem seriam afinal aquelas gémeas que tentam envolver e seduzir Danny numa cena que, por remeter por inteiro para o universo infantil e para a sua peculiar perversidade, é das mais perturbadoras desta obra-prima, The Shining..O filme faz um tal uso da Steadicam que o seu inventor, Garrett Brown, que a utilizara há pouco em Rocky, de Sylvester Stallone, foi contratado como consultor mas acabou por permanecer junto a Stanley Kubrick durante o quase um ano de rodagem. Para a filmagem das cenas de Danny nos corredores do hotel, Brown ficou num veículo preso às traseiras do triciclo, ao nível do olhar da criança..A técnica de Kubrick, todavia, foi muito para além do ponto de vista subjectivo que encontramos em Peeping Tom/A Vítima do Medo, de Michael Powell, de 1960, ou num antecessor mais próximo, em Halloween, de John Carpenter, de 1978. Como salienta Roger Luckhurst numa breve e preciosa monografia sobre The Shining editada pelo British Film Institute, a manipulação técnica é uma das maiores, porventura a maior, proeza de todo o filme e Kubrick fez uma exploração absolutamente magistral das potencialidades da Steadicam, distorcendo de forma ímpar os volumes das divisões, em especial os dos quartos do hotel, e até os rostos das personagens, que adquirem por vezes, em fugazes fracções de segundo, tonalidades vagamente malignas de que nem sempre nos apercebemos, mas que inevitavelmente ficam gravadas no nosso espírito..Mesmo aqui, e por muito estranho que pareça, Kubrick adaptou à sua maneira, e com enormes liberdades criativas, a obra homónima de Stephen King, o celebrado autor de novelas de ficção sobrenatural e de horror que não só odiou o filme como tudo fez para o denegrir. Na novela de King, publicada em 1977 e fortemente influenciada pelo conto "A máscara da morte vermelha", de Edgar Allan Poe, e pelo seminal O Castelo de Otranto, de Horace Walpole, toda a distribuição espacial, na melhor tradição do romance gótico, é desenhada na vertical, com as caves e os andares cimeiros a desempenhar um papel crucial no desenrolar da trama (no livro de King, é na cave, por exemplo, que Jack Torrance se apercebe da história sinistra do hotel, a qual corre a par com o reviver, também nesse espaço, das memórias de abuso familiar que o afectaram para todo o sempre)..Stanley Kubrick, pelo contrário, abandonou o jogo das caves e dos sótãos muito típico da literatura de horror e deu absoluta primazia à horizontalidade e, sobretudo, à lateralidade. No filme, o elevador não é utilizado, só surge como lugar de onde brota um imenso caudal de sangue, e a escadaria somente aparece em duas cenas: ponto de vista é quase sempre horizontal, alongando-se o olhar na sucessão dos grandes salões do piso térreo (desde logo, nas cenas iniciais em que o movimento da câmara acompanha à distância o percurso da família no seu primeiro contacto com o espaço trágico). Mais importante ainda são as oscilações da câmara à direita e à esquerda, as lateralizações do olhar que adensam a inquietude nos espíritos dos espectadores, sempre à espera do (pior) que surgirá de um lado ou do outro, sem aviso prévio ou sinais de perigo..Há quem diga que aqui reside a grande metáfora do filme, ao revelar não o que está escondido num plano inferior (numa cave, numa masmorra, enterrado no solo) mas o que surge repentinamente ao simples virar da esquina. O horror e o mal não são procurados, ao contrário do que sucede com os que vão aos sótãos ou abrem sepulturas em busca de más surpresas; ao invés, o terror é mais traiçoeiro ainda, pois inscreve-se num quadro de normalidade e irrompe nele de forma brusca, electrizante, mas ao mesmo tempo vulgar, banal e democrática, susceptível de ocorrer a cada um de nós no seu dia-a-dia, o que torna tudo muito mais assustador..Mas, e o que é notável, é também a dimensão horizontal e a atenção ao que está próximo que acabam por salvar o pequeno Danny das garras do pai, que o perseguia de machado em punho, como um lobo esfaimado. Numa das cenas finais, a da perseguição no labirinto de buxo, Danny consegue escapar pois conhecia o local como as suas mãos, era aí que passava horas a fio a brincar, e escapa como um coelho abrigado na toca, iludindo aquele que, por conhecer o labirinto apenas de um ponto de vista exterior, vertical, como uma ave de rapina, ignora os recantos e os atalhos escondidos, os meandros da redenção. O mal observa de cima e de longe, como na cena inicial do filme, em que o automóvel dos Torrance é acompanhado à distância, a partir dos céus, ou como na cena em que Jack Torrance se debruça, qual predador alado ou um deus ex machina malfazejo, sobre a maquete do labirinto existente num dos salões do hotel, do Hotel Overlook, note-se..Curiosamente, Kubrick levou essa maqueta para sua casa, onde a tinha exposta no átrio de entrada, como recorda Vicente Molina Foix num pequeno e encantador livrinho saído no ano passado, Kubrick en Casa (Anagrama, Barcelona, 2019). A sua atenção aos pormenores era maníaca, compulsiva, mas também é isso que converte cada um dos seus filmes numa caixa de surpresas, numa enorme casa de segredos cheia de mensagens à clef e códigos ocultos..Vítor Higgs (Ilustração) / Nuno Santos (Animação) / DN.Sobre o famoso labirinto de buxo, por exemplo, há uma cena em que numa das divisões vemos de relance um cartaz numa parede, figurando... o minotauro de Creta. É claro que tudo isto tem motivado a obsessão de muitos, que em sites, blogues ou fóruns de discussão entregam-se loucamente a escrutinar cada fotograma do filme, em busca do real significado das mensagens crípticas e da linguagem cifrada de Stanley Kubrick; os mais conspirativos chegam a asseverar que o pequeno Danny enverga uma camisola alusiva às missões da NASA pois esse foi um expediente que Kubrick encontrou para se redimir e pedir perdão ao mundo por, anos antes, ter participado na farsa das viagens espaciais, um truque propagandístico da Guerra Fria, tendo sido ele, segundo muitos, o autor das imagens falsas dos astronautas a caminhar na Lua....Se é um facto que a organização interna de The Shining é quase sempre horizontal, um dos tópicos essenciais da narrativa, remoto mas decisivo, aponta para a dimensão vertical clássica da literatura gótica, com cadáveres inquietos a intersectar a dinâmica da acção. Logo no início, Jack Torrance é informado de que o Overlook Hotel fora edificado entre 1907 e 1909 e que, segundo se dizia, os seus construtores tiveram de repelir à bala ataques de índios das imediações, enfurecidos por estarem a erguer um hotel em solo sagrado, o solo de um cemitério ancestral das tribos nativas. De uma forma oblíqua, como sempre, os índios aparecem, aliás, em diversos momentos, seja no décor dos interiores com motivos Navajo, seja numa das vestes da personagem feminina Wendy, seja, enfim, nas latas da marca Calumet, com a efígie de um índio no rótulo, existentes na despensa do hotel..Alguns sustentam, inclusivamente, que o caudal de sangue que brota do elevador e invade a tela é uma alusão velada e autocrítica a um passado nacional forjado à custa da destruição das populações nativas e da exploração do trabalho escravo e, em termos mais vastos, a um historial de crueldade e barbárie que Kubrick sempre repudiou, como repudiou os desvarios da Guerra Fria em Dr. Strangelove/Dr. Estranhoamor, de 1964 (não por acaso, só estreado entre nós após o 25 de Abril, em Julho de 1974), e as taras do militarismo, em filmes como Paths of Glory/Horizontes de Glória, de 1957, e Full Metal Jacket/Nascido para Matar, de 1987..Se algumas teses sustentam, com argumentos profundos, que tudo não passa, isso sim, de uma referência ao Holocausto (e, apesar de não praticante, o judaísmo de Kubrick é, de facto, muito importante para a compreensão da sua obra), a marca da cultura americana autóctone e do seu destino trágico é indiscutível, situando-se, para mais, numa linha política e ideológica muito em voga em finais dos anos 1960 e nos alvores da década seguinte, com a ascensão do activismo índio e do red power e episódios como a ocupação simbólica de Alcatraz, entre 1968 1971, e do campo do massacre de Wounded Knee, em 1973..Também político, num certo sentido, e muito mais vincado até do que as referências aos índios, é o discurso do filme sobre a vida familiar e o universo infantil, sobretudo quando sujeitos ao dramatismo próprio de um confinamento prolongado, em que a convivência forçada entre os seres humanos torna mais salientes os seus traços de carácter, para o bem ou para o mal. No caso do protagonista, para o mal, para um horrível absoluto, quase metafísico, soberbamente interpretado por Jack Nicholson num dos seus mais memoráveis papéis. Jack Torrance, escritor falhado de machado na mão, uma péssima companhia..(Continua)Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
A experiência do confinamento. Depois, o desenlace trágico. A loucura, porém, adivinhara-se muito antes disso, quando iam ainda a caminho. Numa manhã límpida de Outono, eram não mais do que um ponto minúsculo a serpentear no horizonte. A estrada ascendente, rumo à montanha. A câmara fixa-se nesse ponto, no VW Beetle amarelo, acompanha-o sem tréguas, aproxima-se e distancia-se dele como uma ave de rapina no encalço da presa, um deus grego vingativo ou, talvez, um anjo maléfico prestes a irromper numa história humana. Em cortante contraste com a paisagem idílica, radiosa, a música prenuncia a tragédia: composta por Wendy Carlos, baseia-se no trecho da Sinfonia Fantástica em que Hector Berlioz parodiou os hinos em latim das missas, adaptando-os a um sabat de feiticeiras. Dies Irae, assim se chama a peça. A ira divina..A cena foi filmada no Glacier National Park por uma equipa transportada em helicópteros. Estiveram quase um mês à espera de que a nitidez da atmosfera permitisse ao lago reflectir de modo cristalino e puro, de uma perfeição sem mácula, a montanha envolvente. Todas as noites o produto das filmagens era enviado para a casa do realizador, que morava longe, em Inglaterra, e raramente ou quase nunca saía de casa, em confinamento total..Entretanto, outra equipa fazia filmagens aéreas do Timberline Lodge, no Oregon, captando aquele que será o palco de toda a tragédia: o histórico Overlook Hotel, no Colorado, cujos últimos hóspedes se preparavam para partir, já que o hotel iria encerrar durante a agreste temporada de Inverno. Pai, mãe e filho, a família Torrance fazia o caminho inverso, rumo à montanha. Jack Torrance, um professor do secundário com aspirações a escritor, decidira ir à entrevista para ser contratado como responsável pela segurança e pela manutenção do hotel durante os meses de clausura e confinamento invernoso..Logo nas cenas iniciais, o movimento da câmara espelha bem o génio e a mestria técnica do realizador, na linha de um anterior filme seu, The Killings, de 1956, e, mais remotamente, na esteira do uso pioneiro da câmara móvel feito por Max Ophüls e do deep focus que Orson Welles e Gregg Toland celebrizaram em Citizen Kane. Do ponto de vista técnico, contudo, o filme é menos lembrado pelas sequências iniciais do que pela utilização inovadora da Steadicam junto ao solo, com a objectiva a acompanhar Danny, a criança, no seu sinuoso percurso de triciclo pelos corredores vazios do hotel maldito..A cena, das mais famosas de todo o filme e da história do cinema, ainda hoje é considerada um prodígio de suspense, mas há nela algo ainda mais prodigioso: apesar da atenção obsessiva do realizador aos pormenores, a grande trouvaille dessa cena - o som entrecortado das rodas do triciclo nas carpetes e nos soalhos do hotel - não foi planeada para ser assim; resultou antes de um intrigante fruto do acaso. Outro pormenor importante: no seu sufocante trajecto pelos corredores do hotel, Danny tem, a dado momento, a visão pavorosa de duas meninas, as duas irmãs Grady, assassinadas brutalmente à machadada pelo seu pai, décadas antes, precisamente ali, no Overlook Hotel (e este nome, obviamente, também é sugestivo)..A imagem fantasmagórica das meninas vestidas a preceito, que falam a Danny numa voz monocórdica, arrepiante, inspira-se na famosa fotografia das gémeas idênticas captada por Diane Arbus em Roselle, Nova Jérsia, em 1967. Simplesmente, as irmãs Grady não eram gémeas: uma tinha 8 anos e a outra 10 quando foram assassinadas pelo pai, o que tem levado milhares de obcecados por estes filme a enredar-se nas mais imaginativas teorias sobre quem seriam afinal aquelas gémeas que tentam envolver e seduzir Danny numa cena que, por remeter por inteiro para o universo infantil e para a sua peculiar perversidade, é das mais perturbadoras desta obra-prima, The Shining..O filme faz um tal uso da Steadicam que o seu inventor, Garrett Brown, que a utilizara há pouco em Rocky, de Sylvester Stallone, foi contratado como consultor mas acabou por permanecer junto a Stanley Kubrick durante o quase um ano de rodagem. Para a filmagem das cenas de Danny nos corredores do hotel, Brown ficou num veículo preso às traseiras do triciclo, ao nível do olhar da criança..A técnica de Kubrick, todavia, foi muito para além do ponto de vista subjectivo que encontramos em Peeping Tom/A Vítima do Medo, de Michael Powell, de 1960, ou num antecessor mais próximo, em Halloween, de John Carpenter, de 1978. Como salienta Roger Luckhurst numa breve e preciosa monografia sobre The Shining editada pelo British Film Institute, a manipulação técnica é uma das maiores, porventura a maior, proeza de todo o filme e Kubrick fez uma exploração absolutamente magistral das potencialidades da Steadicam, distorcendo de forma ímpar os volumes das divisões, em especial os dos quartos do hotel, e até os rostos das personagens, que adquirem por vezes, em fugazes fracções de segundo, tonalidades vagamente malignas de que nem sempre nos apercebemos, mas que inevitavelmente ficam gravadas no nosso espírito..Mesmo aqui, e por muito estranho que pareça, Kubrick adaptou à sua maneira, e com enormes liberdades criativas, a obra homónima de Stephen King, o celebrado autor de novelas de ficção sobrenatural e de horror que não só odiou o filme como tudo fez para o denegrir. Na novela de King, publicada em 1977 e fortemente influenciada pelo conto "A máscara da morte vermelha", de Edgar Allan Poe, e pelo seminal O Castelo de Otranto, de Horace Walpole, toda a distribuição espacial, na melhor tradição do romance gótico, é desenhada na vertical, com as caves e os andares cimeiros a desempenhar um papel crucial no desenrolar da trama (no livro de King, é na cave, por exemplo, que Jack Torrance se apercebe da história sinistra do hotel, a qual corre a par com o reviver, também nesse espaço, das memórias de abuso familiar que o afectaram para todo o sempre)..Stanley Kubrick, pelo contrário, abandonou o jogo das caves e dos sótãos muito típico da literatura de horror e deu absoluta primazia à horizontalidade e, sobretudo, à lateralidade. No filme, o elevador não é utilizado, só surge como lugar de onde brota um imenso caudal de sangue, e a escadaria somente aparece em duas cenas: ponto de vista é quase sempre horizontal, alongando-se o olhar na sucessão dos grandes salões do piso térreo (desde logo, nas cenas iniciais em que o movimento da câmara acompanha à distância o percurso da família no seu primeiro contacto com o espaço trágico). Mais importante ainda são as oscilações da câmara à direita e à esquerda, as lateralizações do olhar que adensam a inquietude nos espíritos dos espectadores, sempre à espera do (pior) que surgirá de um lado ou do outro, sem aviso prévio ou sinais de perigo..Há quem diga que aqui reside a grande metáfora do filme, ao revelar não o que está escondido num plano inferior (numa cave, numa masmorra, enterrado no solo) mas o que surge repentinamente ao simples virar da esquina. O horror e o mal não são procurados, ao contrário do que sucede com os que vão aos sótãos ou abrem sepulturas em busca de más surpresas; ao invés, o terror é mais traiçoeiro ainda, pois inscreve-se num quadro de normalidade e irrompe nele de forma brusca, electrizante, mas ao mesmo tempo vulgar, banal e democrática, susceptível de ocorrer a cada um de nós no seu dia-a-dia, o que torna tudo muito mais assustador..Mas, e o que é notável, é também a dimensão horizontal e a atenção ao que está próximo que acabam por salvar o pequeno Danny das garras do pai, que o perseguia de machado em punho, como um lobo esfaimado. Numa das cenas finais, a da perseguição no labirinto de buxo, Danny consegue escapar pois conhecia o local como as suas mãos, era aí que passava horas a fio a brincar, e escapa como um coelho abrigado na toca, iludindo aquele que, por conhecer o labirinto apenas de um ponto de vista exterior, vertical, como uma ave de rapina, ignora os recantos e os atalhos escondidos, os meandros da redenção. O mal observa de cima e de longe, como na cena inicial do filme, em que o automóvel dos Torrance é acompanhado à distância, a partir dos céus, ou como na cena em que Jack Torrance se debruça, qual predador alado ou um deus ex machina malfazejo, sobre a maquete do labirinto existente num dos salões do hotel, do Hotel Overlook, note-se..Curiosamente, Kubrick levou essa maqueta para sua casa, onde a tinha exposta no átrio de entrada, como recorda Vicente Molina Foix num pequeno e encantador livrinho saído no ano passado, Kubrick en Casa (Anagrama, Barcelona, 2019). A sua atenção aos pormenores era maníaca, compulsiva, mas também é isso que converte cada um dos seus filmes numa caixa de surpresas, numa enorme casa de segredos cheia de mensagens à clef e códigos ocultos..Vítor Higgs (Ilustração) / Nuno Santos (Animação) / DN.Sobre o famoso labirinto de buxo, por exemplo, há uma cena em que numa das divisões vemos de relance um cartaz numa parede, figurando... o minotauro de Creta. É claro que tudo isto tem motivado a obsessão de muitos, que em sites, blogues ou fóruns de discussão entregam-se loucamente a escrutinar cada fotograma do filme, em busca do real significado das mensagens crípticas e da linguagem cifrada de Stanley Kubrick; os mais conspirativos chegam a asseverar que o pequeno Danny enverga uma camisola alusiva às missões da NASA pois esse foi um expediente que Kubrick encontrou para se redimir e pedir perdão ao mundo por, anos antes, ter participado na farsa das viagens espaciais, um truque propagandístico da Guerra Fria, tendo sido ele, segundo muitos, o autor das imagens falsas dos astronautas a caminhar na Lua....Se é um facto que a organização interna de The Shining é quase sempre horizontal, um dos tópicos essenciais da narrativa, remoto mas decisivo, aponta para a dimensão vertical clássica da literatura gótica, com cadáveres inquietos a intersectar a dinâmica da acção. Logo no início, Jack Torrance é informado de que o Overlook Hotel fora edificado entre 1907 e 1909 e que, segundo se dizia, os seus construtores tiveram de repelir à bala ataques de índios das imediações, enfurecidos por estarem a erguer um hotel em solo sagrado, o solo de um cemitério ancestral das tribos nativas. De uma forma oblíqua, como sempre, os índios aparecem, aliás, em diversos momentos, seja no décor dos interiores com motivos Navajo, seja numa das vestes da personagem feminina Wendy, seja, enfim, nas latas da marca Calumet, com a efígie de um índio no rótulo, existentes na despensa do hotel..Alguns sustentam, inclusivamente, que o caudal de sangue que brota do elevador e invade a tela é uma alusão velada e autocrítica a um passado nacional forjado à custa da destruição das populações nativas e da exploração do trabalho escravo e, em termos mais vastos, a um historial de crueldade e barbárie que Kubrick sempre repudiou, como repudiou os desvarios da Guerra Fria em Dr. Strangelove/Dr. Estranhoamor, de 1964 (não por acaso, só estreado entre nós após o 25 de Abril, em Julho de 1974), e as taras do militarismo, em filmes como Paths of Glory/Horizontes de Glória, de 1957, e Full Metal Jacket/Nascido para Matar, de 1987..Se algumas teses sustentam, com argumentos profundos, que tudo não passa, isso sim, de uma referência ao Holocausto (e, apesar de não praticante, o judaísmo de Kubrick é, de facto, muito importante para a compreensão da sua obra), a marca da cultura americana autóctone e do seu destino trágico é indiscutível, situando-se, para mais, numa linha política e ideológica muito em voga em finais dos anos 1960 e nos alvores da década seguinte, com a ascensão do activismo índio e do red power e episódios como a ocupação simbólica de Alcatraz, entre 1968 1971, e do campo do massacre de Wounded Knee, em 1973..Também político, num certo sentido, e muito mais vincado até do que as referências aos índios, é o discurso do filme sobre a vida familiar e o universo infantil, sobretudo quando sujeitos ao dramatismo próprio de um confinamento prolongado, em que a convivência forçada entre os seres humanos torna mais salientes os seus traços de carácter, para o bem ou para o mal. No caso do protagonista, para o mal, para um horrível absoluto, quase metafísico, soberbamente interpretado por Jack Nicholson num dos seus mais memoráveis papéis. Jack Torrance, escritor falhado de machado na mão, uma péssima companhia..(Continua)Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.