Homicídio cai, mas tribunal indicia considerar provadas agressões mortais
O aviso surgiu esta quarta-feira, na 11.ª sessão, agendada como penúltima, do julgamento dos inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras Luís Silva, Duarte Laja e Bruno Sousa. O objetivo, explica o coletivo de juízes, é evitar "decisões-surpresa".
"Produzida a prova em julgamento, e aproximando-se o processo da fase das alegações e subsequente deliberação pelo Tribunal Coletivo, entende este que se justifica, desde já, comunicar aos diversos sujeitos processuais, que, para além da qualificação jurídica imputada em sede de acusação, irá o Tribunal ponderar a qualificação dos factos (...) enquanto ofensa à integridade física qualificada, agravada pelo resultado", lê-se no despacho exarado pelo coletivo presidido por Rui Coelho. E prossegue: "Entende o Tribunal que os factos descritos na acusação sustentam tal imputação que surge como um minus relativamente à imputação original, nesta se contendo. Nessa medida estamos perante uma mera alteração da qualificação jurídica, para crime menos grave, a qual irá ser ponderada pelo Tribunal em sede deliberativa, o que se comunica a fim de evitar decisões-surpresa. Como tal, e nestes termos, comunica-se a todos os intervenientes a possível alteração da qualificação jurídica dos factos imputados aos Arguidos (...)."
Esta advertência, relativa a uma possibilidade que o DN já tinha prefigurado a 22 de março, a da alteração da qualificação jurídica da acusação para a imputação de crimes menos graves, indica que o tribunal se inclina para considerar que não há provas suficientes para condenar os três inspetores pelo crime mais grave do "catálogo", homicídio qualificado, com moldura penal máxima de 25 anos de prisão e que implica intenção de matar. Parece porém indicar que os três juízes viram na produção de prova evidência de que os arguidos agrediram Ihor Homeniuk e que essas agressões levaram à sua morte - o "resultado" que agrava o crime de ofensa à integridade física.
Ouvida pelo DN logo após ter conhecimento do despacho, a defensora do inspetor Luís Silva, Maria Manuel Candal, considerou-o "uma vitória", embora não o resultado que deseja. "Não é uma surpresa, a alteração da qualificação jurídica da acusação é algo que já tínhamos equacionado. E é uma vitória passar de homicídio para ofensas à integridade física, o que implica que não são responsáveis pelo resultado [a morte]. Mas vamos continuar a pugnar pela absolvição dos arguidos." Lembra que as peritas médicas da defesa, cujo testemunho visa pôr em causa o resultado da autópsia efetuada pelo Instituto de Medicina Legal (e que dá como provado que a morte de Ihor se deveu ao efeito combinado de agressões brutais, que lhe terão fraturado as costelas, e de ter sido deixado algemado de braços atrás das costas e deitado, causando-lhe "asfixia mecânica"), ainda não foram ouvidas - a sua audição está pendente de decisão do tribunal.
Também o advogado da viúva de Ihor, José Gaspar Schwalbach, tende a ver o despacho como uma semivitória. "Pode abrir caminho para se estar na presença da garantia de que vai haver uma condenação. Mas baixa-se de um crime de moldura penal de 25 anos para um que tem 16 de pena máxima, o que é pouco face à gravidade dos factos."
No despacho, citam-se vários artigos do Código Penal (CP): o 144º ("ofensa à integridade física grave", com prisão de dois a 10 anos); o 145º, "ofensa à integridade física qualificada", com prisão de três a 12 anos; e o 147º, "agravação pelo resultado", no seu número 1, o qual prevê que se das ofensas à integridade física resultar a morte da vítima a pena é aumentada um terço nos limites mínimo e máximo, do que se retira que a moldura penal aplicável é de quatro a 16 anos.
O crime de "ofensa à integridade física qualificada" ocorre quando "as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente." Essas circunstâncias serão, neste caso, ainda segundo o despacho do tribunal, que cita as alíneas h e m do número 2 do artigo 132º do CP (homicídio qualificado, cujas circunstâncias agravantes valem para todos os outros crimes), ter o crime sido praticado "juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum" e ser o perpetrador "funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade."
Como o DN já explicara, a alteração da qualificação jurídica da acusação pode surgir durante um julgamento no final da produção de prova, antes ou mesmo após as alegações finais das partes (que estão agendadas para a próxima sessão) e até já na fase de apreciação quando, como explicou ao jornal a professora de Direito Penal Inês Ferreira Leite, "o relator (o juiz que vai fazer a proposta de acórdão) "começa a ver tudo, e nessa fase e em conversa com os colegas consideram que houve uma alteração. Aí podem decidir reabrir a audiência de julgamento, dando novo prazo à defesa para contestação, podendo haver produção de nova prova para novas alegações."
Esta alteração da qualificação jurídica é passível de ocorrer, ainda segundo Ferreira Leite, "desde que os factos sejam essencialmente os mesmos e a narrativa seja a mesma". Mas nessas circunstâncias o coletivo de juízes tem de dar "um novo prazo para que a defesa possa contestar a nova qualificação e até apresentar novos meios de prova. Essa apresentação de novos meios de prova só pode ocorrer, porém, em relação ao que seja novo: "Não se trataria, assim, de um novo julgamento, mas de um prolongamento do mesmo", adverte a penalista.
Uma explicação corroborada por Paulo Saragoça da Matta, advogado especialista em Direito Penal e ex presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados: "O tribunal é livre de decidir fazer a alteração da qualificação jurídica, desde que por um crime menos grave - e por definição num caso em que a acusação é de homicídio qualificado todos os crimes são menos graves."
Esta alteração da qualificação jurídica, deixando cair o homicídio deliberado (que sempre pareceu bastante difícil de provar neste caso), poderia admitir outros tipos de homicídio. Por exemplo, "homicídio por omissão", aquele que ocorre quando existe o chamado "dever de garante", ou seja, quando o ator, como é o caso de um polícia, tem o especial dever de evitar um resultado e não faz o que lhe é exigido, resultando dessa inação a morte. Também os crimes de omissão de auxílio ou de tortura e tratamentos desumanos e degradantes (recorde-se que a própria diretora nacional do SEF à data dos factos, Cristina Gatões, entretanto demitida, qualificou a morte de Ihor como "um caso de tortura evidente") poderiam estar sobre a mesa. Mas os juízes parecem não ter considerado essas hipóteses.
Uma vez que a requalificação jurídica dos factos ainda não ocorreu, não é evidente o que se segue, uma vez que o Código de Processo Penal não é claro nesta matéria.
Há quem diga que não poderá haver ainda, nesta fase, novas contestações por parte da defesa. É o caso de um jurista ouvido pelo DN e que prefere não ser identificado: "O despacho do tribunal é um ato de lealdade do tribunal para com as partes, mas que neste momento não implica qualquer reação destas."
Outro jurista ouvido pelo DN, que também quer permanecer anónimo, tem porém opinião contrária: "A leitura literal da lei indica que se deve esperar pela requalificação, mas como essa requalificação só pode ocorrer na sentença, quando as partes já não podem fazer nada a não ser recorrer, a minha experiência prática é de que se deve reagir já. Porque o tribunal está a dar oportunidade às partes, fazendo uma interpretação conforme à Constituição no sentido de, não violando o princípio do juiz virgem [a ideia de que o tribunal se mantém imparcial até ao fim da apreciação], lhes dar direito de defesa. É agora que as partes têm de agir, fazendo requerimentos de prova e preparando as alegações finais com base nesta nova qualificação." Na interpretação deste jurista, "inicia-se agora a contagem de 10 dias corridos para a apresentação de novas contestações ou novos requerimentos de prova."
Recorde-se que o governo deliberou atribuir uma indemnização à família de Ihor Homeniuk, assumindo assim que a sua morte foi responsabilidade do Estado português. Essa indemnização foi arbitrada pela Provedora de Justiça em mais de 800 mil euros.