Não são atores de voz adestrada para seduzir plateias, nem tão pouco académicos especializados em poesia da Antiguidade Clássica. Mas chegam, à medida que a noite avança, e começam a ler Homero, em voz alta, à luz dos archotes, passando o testemunho uns aos outros, à medida que se desenrolam as violentas aventuras de Aquiles, Pátroclo, Heitor, Helena ou Páris, contadas no primeiro poema épico do cânone literário ocidental, A Ilíada. "Quando se calam, ao amanhecer, é frequente que já não sejam as mesmas pessoas da noite anterior", diz-nos a norte-americana Kathryn Holhwein, professora emérita de Literatura da Universidade da Califórnia e presidente da International Readers of Homer, associação por ela fundada em 1998..E, no entanto, tudo começou com a "brutalidade" dum ultimato laboral: "Eu era professora de Inglês no departamento de Humanidades da Universidade mas não era uma classicista. Ensinava poesia de todas as épocas, norte-americana, inglesa, europeia, épica e lírica. Mas um dia disseram-me que tinha de incluir Homero, que eu nunca lera, se queria manter o emprego. A verdade é que, apesar das minhas reticências iniciais, me apaixonei rapidamente e passei a conhecer todas as traduções da Iliada e Odisseia para inglês, a querer saber tudo sobre o autor e o mundo em que viveu" A experiência foi tão boa para todos que, ao reformar-se, os alunos perguntaram-lhe como é que poderiam continuar a experiência fora do campus universitário..A resposta à doçura de tal repto foi uma sessão de leitura pública. A primeira aconteceu em 1998, num rancho da Califórnia - em que participaram 168 pessoas, munidas apenas com um saco-cama, uma lanterna e a tradução para inglês de Richard Lattimore, que todos liam, depois de alguém ter iniciado a sessão com um excerto em grego antigo. "Entre colinas e um rio, aquelas palavras milenares eram seda líquida", recorda Kathryn Holhwein. De tão inesquecível, a experiência tem-se repetido desde então em Los Angeles, Nova Iorque, Londres, Bruxelas, Montevideu, Alexandria e na Grécia, nas ilhas de Kos e Chios. A "escala" mais recente desta viagem ocorreu na semana passada, em Salamanca, antecipando um pouco o encontro mundial de classicistas que se realizará em Espanha em julho do próximo ano..A heterogeneidade de participantes nesta experiência, que se auto-apresenta como "Homero do povo e para o povo", é a nota dominante. "Há pessoas que adoram falar em público, outras que, pelo contrário, ficam em pânico só com a ideia, homens, mulheres, crianças, miúdos da rua, há de tudo, uns leem, outros cantam, como, aliás, era prática comum na Antiguidade", conta a professora, hoje com 92 anos, mas com o entusiasmo pela Literatura (e pelas pontes que ela constrói) intacto. "Não há como falhar, uns interpretam, outros leem quase mecanicamente. Está tudo certo, só não se pode improvisar. O protagonismo vai sempre para o texto de Homero.".O encenador brasileiro Octavio Camargo, que acompanhou Kathryn esta semana, num encontro com o público no Teatro A Comuna (seguido de récita de dois pequenos fragmentos da Ilíada na tradução de Odorico Mendes interpretados por Chiris Gomes e Christiane de Macedo) sentiu a leitura em voz alta de Homero como uma arqueologia subjetiva: "Eu perdi o meu pai muito cedo, com apenas 7 anos, e, por isso, esse mergulho no passado, ao encontro dum pai mítico, foi algo muito importante para mim. No fundo, a minha pergunta era: O que é que o passado da Humanidade tem para me dizer." A partir dessa experiência inicial, Octavio começou a convidar outros para se juntarem a ele e se envolverem neste processo, criando a Companhia de Teatro Ilíadahomero, em 1999. Ao todo são 24 atores do Paraná, que têm por objetivo a encenação do texto integral da Ilíada e da Odisseia, na tradução para Português de Manoel Odorico Mendes. No passado domingo, no Festival de Inverno da Universidade do Paraná, foi levado à cena o Canto 20 da Ilíada, com interpretação de dois atores brasileiros muito conhecidos do público português: Letícia Sabatella e Daniel Dantas..Mas o espetáculo da Poesia antiga não pode parar. Em cima da mesa está, diz-nos o encenador, a possibilidade de levar ao palco uma versão da obra em língua gestual, destinada a deficientes auditivos profundos. Tal como acontece com a norte-americana, a devoção pelo poeta da Antiguidade não esmorece em Octavio:"Gosto muito de Shakespeare, mas a minha pergunta é por que razão se encena tanto este dramaturgo e não Homero? Não há um festival que lhe seja dedicado, nem mesmo na Grécia. A minha teoria é que há todo um véu a encobrir a Europa pré-cristã.".Homero parece ser tão ilimitado e intrigante como a longevidade da sua obra. Kathryn confidencia-nos que, apesar de ser Heitor a sua personagem favorita de A Ilíada, ainda não sabe se ama ou odeia Aquiles, o poderoso semi-deus, traído pela humana fragilidade do seu calcanhar. Tantas leituras depois, esse é o charme de Homero..dnot@dn.pt